segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

LIÇÕES

Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trêmula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?

Mia Couto 
arte Nydia Lozano
de  Idade cidades divindades


domingo, 27 de novembro de 2022

MEMÓRIA DA CHUVA



    












     Talvez o Espírito de Deus pairasse
sobre a face das águas,
mas só o que ele,
                         o menino insone,
viu
foi o escuro e as gotas que caíam 
num murmúrio.
                           Foi só
o que viu
e ouviu,
além da sirene do Cine Glória
em seu alarme
e a avó falando baixinho à Virgem Santíssima,
e os Lobisomens no vento,
e na imaginação o açude 
solto nas ruas,
na praça,
subindo até tanger o sino da igreja
do Divino.

Talvez o Espírito de Deus pairasse
sobre as nuvens,
mas não estava lá quando veio a manhã
e as nuvens se esgarçaram 
                                       e o azul foi alagando
o céu
          e o açude respirava
serenamente
entre as margens pantanosas e a muralha de pedra.

E todos
estavam felizes.
                          Todos.
                                     Menos um:
                                                        aquele,
o menino insone,
que perdera seu reino submerso.

Ruy Espinheira Filho
de Memória da Chuva
foto Schutterstock

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

NESTE TEMPO

 

 Feliz ano...Hoje que tens 
minha terra a teus dois lados, és feliz, irmão.
Eu sou errante filho do que amo.
Responde-me, pensa que estou contigo
a perguntar-te, pensa que sou o vento de janeiro,
vento Puelche,* vento velho das montanhas
que quando abres a porta te visita
sem entrar, ventilando suas rápidas perguntas.
Dize-me, entraste por um campo de trigo ou de 
         cevada,
estão dourados? Fala-me de um dia de cerejas.
Longe do Chile penso num dia redondo,
cor de amora, transparente, de açúcar em cachos,
e de grãos espessos e azuis que gotejam
em minha boca as suas taças carregadas de delícia.
Diz-me, mordeste hoje a anca pura
de um pêssego, e enchendo-te de imortal
          ambrosia,
até que também foste fonte da terra,
fruto e fruto entregues ao esplendor do mundo? 

 

                                        Pablo Neruda 
                                       de Canto Geral 

                      *Vento Puelche; vento leste, que vem da cordilheira para o mar.
   


NOTURNO

 


Chega o circuito do deserto,
à alta noite aérea do pampa,
ao círculo noturno, espaço e astro,
onde a zona do Tamarugal recolhe
todo o silêncio perdido no tempo.

Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.

Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.

Eu te amo, irmã pura do oceano.
Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.

Estava só.
Era planura e solidão a vida.

Era este o peito varonil do mundo.

E amei o sistema de tua forma reta,

a extensa precisão de teu vazio.


Pablo Neruda
de Canto Geral
arte Bigthu Mbnail


quinta-feira, 17 de novembro de 2022

XIV

 


 Quando  flores e nuvens,
mosaicos de silêncio repentino,
       frescos vales e montes,
onde a erva cresce e o gado se apascenta
        e o rio a sua prata.

oferece, gentil, à móvel brisa
        de sede sossegada,
quando tudo o que tenho for lembrança,
        que será do que vejo,
se a mais fiel memória transfigura

        o que lembra? No entanto,
o mesmo milho crescerá no campo,
        repetindo o ritual
de há milênios; as mesmas - outras águas 
        espelharão no dorso

de vidro movediço os mesmos ramos.
        Estas serão as árvores,
as verdadeiras, íntegras, antigas,
        que só com o pensamento
eu não alcançarei em plenitude

        de silêncio e de vida.
Pois uma coisa é ter, outra, lembrar.
        Uma coisa é viver,
viver em bruto, o sol dando na pele,
         o vento levantando

cortinas de esperança e esquecimento;
         outra coisa é criar.
Criar quase prescinde do que existe.
         o que existe é somente
um rascunho ou um ponto de partida.

        Enquanto posso, vivo
a fértil realidade destes longes.
        Laboriosa construo
com este mel, para os futuros sonhos,
        aprazível morada.

Marly de Oliveira
de Obra Poética Reunida


XIII

      

        O Sol é bom e ameno,
Só pelo frio se sabe que é inverno,
       Os dias continuam
       como os da primavera,
com crepúsculos lentos e arroxeados.

         Ser feliz é tão fácil
que os pensamentos brotam delicados
         como potes saídos
          do torno de um oleiro.
E pousam como jarras sobre a mesa.

           São do  cristal mais leve,
e soariam como o fresco riacho,
            como o canto sem voz,
             se, como o vento, dessem
de encontro à livre espiga e à dura pedra.

             Tudo tão verdadeiro!
   Para que cogitar da natureza
            do que à
s vezes me atinge,
             quando penso no dia 
em que só for memória o que ora tenho?

              Marly de Oliveira        
        de Obra Poética Reunida
             arte Ming Feng

..


quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O SILÊNCIO DAS PLANTAS





A relação unilateral entre mim e vocês
até que não vai tão mal.

Sei o que é folha, caule, pétala, pinha e espiga
e o que lhes acontece em abril e em dezembro.

Embora minha curiosidade não seja recíproca,
me debruço só para ver algumas de vocês
e para ver outras ergo a cabeça.

Dou-lhes nomes:
bordo, bardana, hepática,
urze, zimbro, visco, miosótis,
mas vocês não me dão nenhum.

Partilhamos a mesma viagem.
Durante uma viagem conjunta é costume conversar, afinal,
trocar impressões, nem que seja sobre o tempo
ou sobre as estações que passam no trajeto.

Não faltariam assuntos, pois temos muito em comum.
Essa mesma estrela nos mantém sob seu alcance.
Projetamos sombras na base das mesmas leis.
Procuramos saber algo, cada qual do seu jeito,
e somos parecidos também no que não sabemos.

Perguntem, e eu lhes explicarei como puder:
o que é isso de ver com os olhos,
para que bate meu coração
e por que meu corpo não tem raízes.

Mas como responder a perguntas não feitas,
se além disso se é alguém 
que para vocês é tão ninguém.

Epífetas, arvoredos, prados, juncos -
tudo que lhes digo é monólogo
e não são vocês que escutam.

Uma conversa entre nós é imperiosa e impossível.
Urgente na vida apressada
e adiada para nunca.

Wislawa Szymborska
de Um amor feliz
Tradução Regina Przybycien