quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Canção da Tarde no Campo





Caminho do campo verde,
estrada depois de estrada.
Cercas de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.

(Eu ando sozinha
no meio do vale.
Mas a tarde é minha.)

Meus pés vão pisando a terra
que é a imagem da minha vida:
tão vazia, mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida!

(Eu ando sozinha 
por cima de pedras.
Mas a flor é minha.)

Os meus passos no caminho
são como os passos da lua:
vou chegando, vais fugindo
minha alma é a sombra da tua.

(Eu ando sozinha
por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.)

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.

(Eu ando sozinha,
ao longo da noite.
Mas a estrela é minha.)

Cecília Meireles
In Obra Poética
arte André Lucero


Borboletas voam
junto das folhas das árvores.
Ar primaveril.

Delores Pires

Vida



Tamborila no telhado e
pinga, pinga, pinga.

Embala aconchegos
e úmidos olhos, ávidos de sol,
mas carentes, carentes, carentes
da melodia da chuva.

Melodia-se o amor e busca
cascatas de arco-íris
quando o sol se impõe.

Tamborila no telhado
e pinga, pinga, pinga.

Escorre pelas telhas,
desgruda-se das janelas
e busca caminhos de metamorfose.

Gotas dão-se as mãos
e se transformam em risonhos rios
semeados de prateadas praias
e corredeiras que, na pressa de ser mar,
tecem canções nos labirintos das rochas e embalam
pedregulhos pra proteger ingênuos pés nas praias
- remédios de descanso.

“H2O”, dizem uns,
“água”, dizem outros.

“Vida”, é o que diz a chuva.
E tamborila no telhado,
embalando amores.

E pinga, pinga, pinga....

Donald Malschitzky

quarta-feira, 30 de agosto de 2017




A beleza das coisas simples,
A felicidade dos imensos nadas,
Ser natureza unicamente
e tudo compreender.

Ser simples.
Na simplicidade cheia de força
Que a natureza tem;
Me irmanar com a vida,
Sentí-la profundamente,
Fazer em meu ser profundas chagas
Com a dor de todos.
E me sentir compensada
Na alegria do voo de um pássaro,
Na misteriosa poesia
De estrelas morrendo
Envoltas em luz
Ao dia surgir.

Eglê Malheiros
In Jardim Judith

Primavera





Mais uma vez percorre a parda senda
dos montes limpos pelos temporais:
aonde a beleza chega, brotam flores
e cantos de pássaros, uma vez mais.

Uma vez mais bafeja-me os sentidos
para, em tão puro e terno florescer,
doce pátria e propriedade minha
a terra - que me hospeda - parecer.

Hermann Hesse
In Andares
Tradução Geir Campos

Lovely London



Nos parques do outono os candidatos ao sol
compram seu tempo. Nas cadeiras preguiçosas
se estira a preguiça dos desejos
preparados para o frio.

Dia a dia os dedos do outono vão dourando
os parques. De Londres onde o céu é baixo
as gaivotas gritarão seu rio.
Sólida imperial a cidade se guarda
a segurança dos jardins: a lembrança
se guarda em nós quando seu tempo 
ultrapassamos.

Lovely London. A vida os seus silêncios
vai passando e nós
em corredores de museus
o tempo estéril exercitamos.

H.Dobal

In O Tempo Consequente



Doce encantamento:
o mundo, o carinho, a paz
cabem num abraço.

Delores Pires
in Voo

Ode às Manhãs Transfiguradas



Sim,
Outras são as manhãs
Após as chuvas
Em doces gotas de amêndoas
E emblemáticos suores de uvas.

Manhãs em hortas regadas,
Frescor de sumos, feiras livres-
‘Salsa, sálvia, rosmaninho, tomilho’ -
Respingos de amor em refrões medievais

Sedosas manhãs molhadas,

Especiarias mais raras,
Orquídeas do Nepal,
Cravos da Ìndia,
Poção mágica,
Erva medicinal.

Cromáticas manhãs lavadas:
Verde- ingás, vermelho-pintangas
E tantas mais cores que bailam
No pomar de líquidas miçangas.

Límpidas crisálidas,
Abelhas em trânsito,
Pássaros cantantes
Lavandas,

Geadas

E ainda turíbulos,
Aromas de incenso,
Antigas lágrimas de semanas santas
Nos missais.

Bendito, o fruto de vosso ventre,
Manhãs transfiguradas,
A germinar, a se abrir
No úmido jardim das palavras.

Fernando Campanella
In PalavreAres- Poemas,Crônicas & Imagens
foto de CaptPiper

Mar Amor



quando o mar
quando o mar tem mais segredo
não é quando ele se agita
nem é quando é tempestade
nem é quando é ventania
quando o mar tem mais segredo
é quando é calmaria

quando o amor
quando o amor tem mais perigo
não é quando ele se arrisca
nem é quando ele se ausenta
nem quando eu me desespero
quando o amor tem mais perigo
é quando ele é sincero.

Cacaso
arte willem haenraets

Dentro de Mim Mora um Anjo




Quem me vê assim cantando
não sabe nada de mim
dentro de mim mora um anjo
que tem a boca pintada
que tem as asas pintadas
que tem as unhas pintadas
que passa horas a fio
no espelho do toucador
dentro de mim mora um anjo
que me sufoca de amor
Dentro de mim mora um anjo
montado sobre um cavalo
que ele sangra de espora
ele é meu lado de dentro
eu sou seu lado de fora
Quem me vê assim cantando
não sabe nada de mim
Dentro de mim mora um anjo
que arrasta as suas medalhas
e que batuca pandeiro
que me prendeu nos seus laços
mas que é meu prisioneiro
acho que é colombina
acho que é bailarina
acho que é brasileiro.

Cacaso
arte Liliya Popova



A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata."
Cecília Meireles
 
 
Luz da Noite Lis da Noite
meu destino é te adorar.
 
Serei cavalo marinho
quando a lua semi  fátua
emergir de meu canteiro
e tu tiveres saído
em meus trajes de luar.
 
Serei concha privativa,
turmalina, carruagem,
Mas só se tu, Luz da noite,
teu delírio nesta margem
já quiseres  desaguar.
 
(Não te faças tão ingrata
meu bem! Quedo ferido
e meus olhos são cantatas
que suplicam não me mates
em adunco anzol de prata!)
 
E quando nós nos amamos
em nossa vítrea viagem
de geada e de serragem
pelo meio continente!
 
Luz da noite Lis da Noite
meu destino é te seguir.
 
Meu inábil clavicórdio
soluça pela raiz,
e já pareces tão farta
que nem sequer onde filtra
meu lado bom te conduz:
Minha amiga  vou fremindo
embebido em tua luz.
 
Rio, 1964
 
Cacaso
In A Palavra Cerzida 
tela Yuri Krotov

Ouve,  alma da Natureza, a minha canção.
Levanto a voz e os meus sentimentos louvam a magia da
 vida com musicalidade amena e doce. 
As notas melódicas da minha alma transformada em harpa
viva, compõem uma sinfonia que perpassa pelo ar, exaltando
 a poesia que estava adormecida no meu ser.
Durante o canto que se alteia e se modula, espalhando festa,
 meus ouvidos se deleitam com a alma da Natureza que agradece.
A brisa perpassa, ligeira, voluteando, e uma suave melodia
baila no leve ar; a música do córrego, em ritmado rumorejo,
enuncia uma agradável balada; a cachoeira despedaça cristais de
líquida espuma, no atrito das pedras lisas e é uma romanesca; a
terra se arrebenta em flores e estas desatam perfume em delicioso
cantochão...
Eu silencio o meu canto e ouço...
Oh! alma da Natureza!
Atrever-me a cantar para ti, quando, criatura de Deus colocada
no teu manancial de bênçãos, sou, também, parte da tua
harmonia!  
Ensina-me, então, a viver o amor, que é a canção mais
expressiva que de ti se exterioriza.   
Faço silêncio no coração para ouvir-te, alma da Natureza,
e, um mutismo de amor e veneração, descubro que também
 estou cantando.
Divaldo Franco pelo espírito
de Rabindranath Tagore
In Estesia
arte Charles Daniel Ward (British,1872-1935), "The Progress of Spring", 1905

terça-feira, 29 de agosto de 2017

As Palavras de Amor


Esqueçamos as palavras, as palavras: 
As ternas, caprichosas, violentas,
As suaves de mel, as obcenas,
As de febre, as famintas e sedentas.
Deixemos que o silêncio dê sentido.
Ao pulsar do meu sangue no teu ventre:
Que palavra ou discurso poderia
Dizer amar na língua da semente?

José Saramago
In Provavelmente Alegria
Pintura de Willem Haenraets

Despedidas




Começo a olhar as coisas
como quem, se despedindo, se surpreende

com a singularidade
que cada coisa tem
de ser e estar.

Um beija-flor no entardecer desta montanha
a meio metro de mim, tão íntimo,
essas flores às quatro horas da tarde, tão cúmplices,
a umidade da grama na sola dos pés, as estrelas

Nada mais é gratuito, tudo é ritual.
Começo a amar as coisas
com o desprendimento que só têm 
os que amando tudo o que perderam

já não mentem.


A.Romano de Sant'Anna
In Epitáfio para o Séc.XX

O Mar é Azul




O mar é azul porque imita o céu,
que é azul porque imita a morte,que é azul porque imita a vida,
que é azul porque imita o mar...
Por isso vivem todos tão unidos
O mar é reunião
de todos os rios que já foram
(inclusive os gregos).
dos que são e dos que ainda virão.

Vicente Cechelero


As Estações da Vida




- A Primavera chega muito linda.
Trazendo nas mãos, um "bouquet" de flores.

Perfumando de sonhos nossa vida.
E semeando risonha seus amores.

- Vem o Verão, inesperadamente.
O seu calor inflama corações.
Todo ar se pulveriza de paixões,
Mostrando-nos a vida diferente.

- Mas o outono, não se faz esperar.
Vão os nossos castelos todos ruindo.
Fios brancos começam a brilhar,
Sob os sonhos que tristes vão sumindo.

- Então o Inverno chega se arrastando.
Traz na cabeça flocos de algodão.
Nossa final morada vai mostrando,
Nos levando seguros pela mão.

Yedda Lamounier
tela by Frederick Morgan


In Soluços do Coração

Estrela



Gatinho, meu amigo,
fazes ideia do que seja uma estrela?

Dizem que todo este imenso planeta
coberto de oceanos e montanhas
é menos que um grão de poeira
se comparado a uma delas.

Estrelas são explosões nucleares em cadeia
numa sucessão que dura bilhões de anos

O mesmo que a eternidade

Não obstante, Gatinho, confesso
que pouco me importa
quanto dura uma estrela

Importa-me quanto duras tu,
querido amigo,
e esses teus olhos azul-safira
com que me fitas

Ferreira Gullar
In Boa Companhia - Poesia

Cores : Inquilinas do mundo



A cada nova aurora,
réstias de luz
brincam em nossas vidraças,
e aguardam a febre do meio-dia.

Na dispersão da luz
as cores se avolumam:
terra, laranja,amarelo e ferrugem.

Solarizada, a natureza
realça sua vivez até afogar-se num pélago
de tintas outonais.

Entre contrastes, a lúcida pupila
acomodou sua alma
na visão edênica,
criando para si
um mundo ainda inconcluso,
advento da tônica final.

O que esta visão revela?
Um silêncio?
Uma ventania?
Uma canção?

Colhe-se canções quando em pranto
jogamos as sementes?

Dúnia de Freitas
In À Beira de mim na madrugada azul

Soneto 1



    Já vem a primavera, desfraldando
    Pelos ares as roupas perfumadas,
    E os rios vão, nas águas jaspeadas, 
    Os frondíferos troncos retratando.

    Vão-se as neves dos montes debruçando
    Em tortuosas serpes argentadas;
    Pelas veigas, o gado, alcaifadas,
    A esmeraldina felpa vai tostando.

    Riem-se os céus, revestem-se as campinas;
    E a natureza as melindrosas cores
    Esmera na pintura das boninas.

    Ah! Se assim como brotam novas flores,
    Se remoça todo o orbe...das ruínas
    Dos zelos renascessem meus amores!

                           
                                        Filinto Elísio