sábado, 30 de outubro de 2021

PENSAR É ENCHER-SE DE TRISTEZA

 

“To think is to be full of sorrow
J. Keats, Ode to a nightgale

Pensar é encher-se de tristeza
e quando penso
não em ti
mas em tudo
sofro

Dantes eu vivia só
agora vivo rodeada de palavras
que eu cultivo
no meu jardim de penas

Eu sigo-as
e elas seguem-me:
são o exigente cortejo
que me persegue

Em toda a parte
ouço o seu imenso clamor”

Ana Hatherly
de A Idade da Escrita e Outros Poemas
 arte Catrin Weltz Stein

DAR-SE




 Dar-se
entregar-se
o querer no outro transformar-se

cegueira esplêndida esta
vitória álacre e suma desgraça

Ana Hatherly
de Volúpsia,1994
arte Christiam Schloe


AZUL PROFUNDO



Azul profundo, ó bela
noite inefável dos
pensamentos de amor! 

Ó estrela perfeita
sobre o espesso horizonte!

Ó ternura dos lagos
refletindo montanhas!

Ó virginal odor
da primavera derradeira!

Ó tesouro desconhecido
por toda a eternidade!

Ó luz da solidão,
ó nostalgia, ó Deus!

 Henrique Lisboa
de Azul profundo
arte Vincent Van Gogh

NATAL

 
Vejo a estrela que percorre 
a noite larga.

Vejo a estrela que perturba
fundos mares.

Vejo a estrela que revela 
a eternidade.

Mas para onde foi a estrela
contemplada?

Para onde foi no momento 
mais amargo?

Em que cimos ora habita 
que debalde

se enchem meus olhos de brandas
orvalhadas?

Vejo a estrela - tão de súbito! - 
ao meu lado.

Vejo os olhos do Menino 
desejado.

Henriqueta Lisboa
de Luz da Lua




quinta-feira, 28 de outubro de 2021

O GATO

 

Uma forma contendo vida: o gato
é um espaço pulsante e sonolento
                                                       sobre a poltrona.

Olho-o.
Além de seus pelos de angorá a vida cessa.
Objetos não pulsantes o rodeiam.

O gato e eu
densas formas vivas
se espreitando.

Affonso Romano de Sant 'Anna
de Sísifo desce a montanha
arte Richard Schmid

MEDO DE PALCO

 


Poetas e escritores.
É assim que se diz.
Logo, poetas não são escritores, então o quê -

Os poetas são poesia, os escritores são prosa -

Na prosa pode caber tudo, inclusive a poesia,
mas na poesia deve haver só poesia -

De acordo com o cartaz que a anuncia
com o floreio art nouveau de um P maiúsculo,
inscrito nas cordas de uma lira alada,
eu deveria entrar voando, não andando -

E não estaria melhor descalça
do que com esse sapato comum
batendo o salto, rangendo,
desajeitado substituto de um anjo? -

Se ao menos o vestido fosse mais longo, esvoaçante,
e os versos saíssem não da bolsa, mas da manga,
e versassem sobre a festa, o desfile, o sino solene,
dim dom
ab ab ba -

Mas lá no pódio já espreita uma mesinha,
meio de sessão espírita, com pés dourados,
e na mesinha esfumaça um castiçal -

De onde deduzo
que terei que ler à luz de velas
o que escrevi à luz de uma lâmpada comum
tac tac tac na máquina -

Sem me preocupar antes do tempo
se isto é poesia
e que poesia -

Se aquela na qual a prosa é malvista -
Ou aquela que é bem-vista na prosa -

E que diferença é essa,
perceptível apenas na penumbra,
sobre o fundo de uma cortina bordô
com franjas violeta?

Wislawa Szymborska
de Um amor feliz
arte William Kay Blakloc


DIVÓRCIO

 

Para os filhos, pela primeira vez o fim do mundo.
Para o gato, novo dono.
Para a cachorra, nova dona.
Para os móveis, escadas, rangidos, leva ou não leva.
Para a parede, quadrados brancos depois de retirados os quadros.
Para os vizinhos do térreo, um assunto, uma pausa no tédio.
Para o carro, seria melhor se fossem dois.
Para os romances, poesia — está bom, leve o que quiser.
Pior no caso da enciclopédia e do vídeo
e também daquele manual de redação
onde talvez haja regras de uso de dois nomes
se os ligar ainda com a conjunção "e"
ou os separar com ponto final.

Wislawa Szymborska
de Um amor feliz
arte Amanda Cass

INSTANTES

 

Caminho pela encosta de uma colina verdejante
Grama, florzinhas na grama,
como numa gravura para crianças.
O céu nevoento já azulando.
A vista de outras colinas se amplia em silêncios.

Como se aqui não tivesse havido cambrianos e silurianos
rochas rosnando uma para a outra,
abismos elevados,
noites em chamas
e dias em nuvens de escuridão.

Como se por aqui não tivessem se movido as planícies 
em delírios febris,
calafrios gelados.

Como se só alhures tivessem fervilhado os mares
e rompido as margens dos horizontes.

São nove e trinta, hora e local.
Tudo no lugar e em assente concórdia.
No vale, um riacho pequeno como riacho pequeno.
Um caminho em forma de caminho desde sempre e sempre.

Um bosque simulando um bosque pelos séculos dos séculos, amém,
e  no alto, pássaros em voo no papel de pássaros em voo.

Até onde a vista alcança, reina aqui o instante.
Um daqueles instantes terrenos
que se pede que durem.

Wislawa Szymborska
de Um amor feliz 
(tradução de Regina Przybycien)
arte Vincent Van Gogh

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

EXPLICAÇÃO DA ETERNIDADE

 

devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgamos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto
arte Willem Haenraets




Um dia, quando a ternura for a única regra da manhã,
acordarei entre os teus braços. a tua pele será talvez demasiado bela.
e a luz compreenderá a impossível compreensão do amor.
Um dia, quando a chuva secar na memória, quando o inverno for
tão distante, quando o frio responder devagar com a voz arrastada
de um velho, estarei contigo e cantarão pássaros no parapeito da
nossa janela.
 Sim, cantarão pássaros, haverá flores, mas nada disso
será culpa minha, porque eu acordarei nos teus braços e não direi
nem uma palavra, nem o princípio de uma palavra, para não estragar
a perfeição da felicidade.


José Luís Peixoto,
de A Criança em Ruínas
arte Nydia Lozano

terça-feira, 26 de outubro de 2021

SOLIDÃO


 Aproximo-me da  noite
o silêncio abre os seus panos escuros
e as coisas escorrem
por óleo frio e espesso.

Esta deveria ser a hora
em que me recolheria
como um poente
no bater do teu peito
mas a solidão
entra pelos meus vidros
e nas suas enlutadas mãos
solto o meu delírio

É então que surges
com teus passos de menina
os teus sonhos arrumados
como duas tranças nas tuas costas
guiando-me por corredores infinitos
e regressando aos espelhos
onde a vida te encarou.

Mas os ruídos da noite
trazem a sua esponja silenciosa
e sem luz e sem tinta
o meu sonho resigna

Longe
os homens afundam-se 
com o caju que fermenta
e a onda da madrugada
demora-se de encontro
às rochas do tempo

Mia Couto
de Poemas Escolhidos
arte Vincent Van Gogh

ÂNSIA




Não me deixem tranquilo
não me guardem sossego
eu quero a ânsia da onda
o eterno rebentar da espuma

As horas são-me escassas:
dai-me o tempo
ainda que o não mereça
que eu quero
ter outra vez
idades que nunca tive
para ser sempre
eu e a vida
nesta dança desencontrada
como se de corpos 
tivéssemos trocado
para morrer vivendo.

Mia Couto
de Poemas Escolhidos
arte Vincent Van Gogh

domingo, 24 de outubro de 2021

SEGREDO

 

Não sei se queres 
meu passado de presente
antes da era espacial
flutuando aos oito meses em céu noturno
- rodeada por vinte e cinco estrelinhas -
que o fotógrafo inventou.

Literalmente no ar.

Aos quinze
- como qualquer adolescente florescente
abeladormecidadobosque

Não amava?
Ou amava de modo interstelar
por intuição telepatia ou desvario
segundo o módulo irracional (ou racional )
da era espacial-futura?

Não sei se queres
meu presente de presente
Quase sempre estou perdida num jardim
(fora ou dentro de mim)
com lágrimas ou sem -
intemporal (por opção e bondade do Amor)
carinhosa, sensual, correta, isto é,
o coração andando na direção certa
do que aprendeu numa lição completa.

Não sei se queres meu futuro de presente...
O UM não é número e nele estou contigo (amor e amigo)
agora e sempre
no único exemplar de uma edição completa.

Dora Ferreira da Silva
de Cartografia do Imaginário (poemas)
arte Abbott Fuller Grave


NATAL

                                                                                  


Canção: vento suave ou flauta
soprando para um coração atento.
Sorriso das coisas.
Da noite nasce o dia
íntimo infindável
sempre de novo nasce
inverno ou primavera
na alma que espera
seu destino.
Ser boi ou burrinho
pastores ou anjos
a mãe e o padrinho.
Enfim, o menino.

Dora Ferreira da Silva
de Cartografia do imaginário (poemas)
arte Hans Memling

sábado, 23 de outubro de 2021



O ser que é ser e que jamais vacila
Nas guerras imortais entra sem susto,
Leva consigo este brasão augusto
Do grande amor, da grande fé tranquila.

Os abismos carnais da triste argila,
Ele os vence sem ânsias e sem custo…
Fica sereno, num sorriso justo,
Enquanto tudo em derredor oscila.

Ondas interiores de grandeza
Dão-lhe esta glória em frente à Natureza,
Esse esplendor, todo esse largo eflúvio.

O ser que é ser transforma tudo em flores…
E para ironizar as próprias dores
Canta por entre as águas do Dilúvio!

Cruz e Souza
de Últimos sonetos,1905.
arte Christian Schloe


terça-feira, 19 de outubro de 2021

POEMAS DA CASA

 

7

Perscruto com a lente
A cor dos teus olhos.
O arco-íris se renova
A cada trecho da memória.
Procuro uma definição
Que não se encontra no mundo.
Neste jogo nossos seres
Referverem futuros.

8

Há um momento em que o piano se cala.
Um momento apenas, de suspensão ou espanto,
Enquanto os cavalos de gesso irrompem da aurora
E anunciam o advento do tempo futuro.
Tua mão coberta de rendas adeja no ar
Perseguindo uma forma indecifrável e substancial.
Cantam lá fora, mas o murmúrio nos afoga,
De nossas próprias vozes, 
concentradas num êxtase.

9

A valsa, vida é valsa,
Precisamos da valsa
Como quem precisa da morte.
Os dedos da pianista 
Tecem nossos díspares destinos.
Não percebes o desencanto e avanças
Os sinais, as lâmpadas do tempo, os sinos,
Numa aleluia que é como taças que se rompem.

23/11/45

Hélio Pellegrino
de Minérios Domados
arte Childe Hassam





POEMAS DA CASA



1

Lentamente o Outubro
Penetra tua voz.
A um som de piano
Renascem borboletas.
Ai quem me dera
Fixar este momento
- Como uma pluma.

2

O amarelo desentranha
Procissões submersas,
As cadeiras florescem
Como prados ou túmulos.
As vozes suspendem
Teu vestido de noiva
- E súbito desapareces.

3

O teu perfil está colado à parede
Como um cartaz irrepreensível.
Todas as forças do caos
Se concentram no estuque.
Entre teto e poltrona
o indefinível azul.
Juntos sem o saber
Conjugamos os verbos essenciais.

4

Teu soluço é uma flor
Que irrompe do assoalho.
Os pés adquirem uma vida
Misteriosa e sutil.
Das flores que a mão cultiva
- Só permanece uma última.

5

As jarras têm uma sabedoria
Que a tua inocência ignora.
Meu desejo renova as águas
E as provisões de carinho.
No lenço branco fica o teu nome
Gravado em rosa e laranja.
Nos perderemos um dia
- Como um grito.

6

Os arabescos de madeira
Já nada podem contra ti.
Teu vestido negro reluz
Com o o perdido diamante.
Nada fazes que não seja teu
- E teu nome se perde.


Hélio Pellegrino
de Minérios Domados
arte Abbott Fuller Graves

III

 

Serei breve,
mas não tão breve
que a eternidade
escape do coração.

Porque sobre a terra
cresce um sonho
de grão em grão
até a plenitude.
É meu sonho de terra justa
e perfeita
e dividida.

Cresce
enquanto espero e cresço
E me acresço
de vão em vão
até o tempo inteiro, o tempo inteiro,
em terra de romã e sonho justo
e perfeito
e dividido.

Serei breve,
Mas não tão breve
que a eternidade
escape do coração.

- Lindolf Bell,
 de "As vivências elementares"
Arte Dorina Costras

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

SOB O CÉU TÃO AZUL...


Sob o céu tão azul que se espiritualiza,
o jardim vai fechar as pétalas das rosas
como alguém que cerrasse as pálpebras medrosas
para ver o que só no sonho se divisa...
Tudo adormece em torno...E a paisagem, mais lisa
que um esmalte, desfaz em sombras vaporosas...
Passam apenas no ar, vêm das moitas cheirosas
perfumes doces, sons de flauta pela brisa...
A noite desce e apaga as cores... E a vida
do jardim silencioso onde as luzes se enfeixam,
sobrevive somente a voz d´água, esquecida.
E sob o céu azul que se prolonga além,
fecham-se as flores, como os olhos, lentos, fecham
para ver o que só no sonho os olhos veem...

Onestaldo de Pennafort
arte   Vincent Van Gogh

sábado, 16 de outubro de 2021

MOZART NO CÉU



 No dia 05 de dezembro de 1791 Wolfgang Amadeus Mozart 
                  [entrou no céu, como um artista de circo, fazendo 
             [piruetas extraordinárias sobre um mirabolante cavalo
                                                                                       [branco
       Os anjinhos atônitos diziam: Que não foi?
Melodias jamais ouvidas voavam nas linhas suplementares
                                                              [superiores da pauta. 

Um momento se suspendeu a contemplação inefável.
A virgem beijou-o na testa
E desde então Wolfgang Amadeus Mozart foi o mais moço
                                                                             [dos anjos.

Manuel Bandeira
de Lira dos Cinquent´anos
arte ARaphael Sanzio
Vídeo Mozart - The Piano Sonata n.16 in C Major


The Phantom of the Opera - Prague Cello Quartet [Official video]

               

ARTE ANDRIUS KOVALINAS


quinta-feira, 14 de outubro de 2021

MORTE



 E lutarás comigo,
fresca ainda de vento,
presa às luzes do dia
pelos cabelos últimos.
Quebrantarás meus olhos,
sei.
Apagarás as mãos
para a ternura,
para o amor,
também sei.
E alcançarás a distância 
entre mim e quem amo,
imperdoável.
E me terás por fim.
Mas sem entrega, dura.
Mais que difícil, 
fria.

Marly de Oliveira
de Cerco da Primavera
arte Christian Schloe

PRESSÁGIO



Sei que virás esta noite
nas palmas breves do vento.
Tão certa tua presença,
que adivinho teu perfil
crivado no firmamento.

Sei que virás, que um rumor
escuto de asas chegadas.
(Mas não sei por ventura 
ou desventura, só tenho
para teu rosto calado
uma profunda ternura)

E enquanto crispa o silêncio
seus longos dedos agudos
na noite de águas-marinhas,
teço meu sonho e desenho 
abstratas, tênues figuras
com formas tuas e minhas.

Marly de Oliveira
de Cerco da Primavera
arte Dorina Costras
 

PAZ DE AMOR

 

Calemos esta paz como um segredo
de amor feliz. Não seja este silêncio
ponto final em nosso terno enredo:
não nos encerre o amor, antes condense-o.

Olhemo-nos nos olhos face a face.
sem recuar surpresos como o amigo
que de repente no outro deparasse
apenas o lembrar do tempo antigo.

Não. Sempre em nós renascerão searas.
novas chuvas trarão nova colheita.
folhas novas, translúcidas e raras.

E brotará da tua mão direita
água súbita e casta do rochedo
um novo amor, que vença a morte e o medo.

Odylo Costa, filho 
de Boca da Noite - 1979
arte Willem Haenraest

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

QUANDO AS CRIANÇAS BRINCAM

 

Quando as crianças brincam
E eu as oiço brincar,
Qualquer coisa em minha alma
Começa a se alegrar.

E toda aquela infância
Que não tive me vem,
Numa onda de alegria
Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma,
E quem serei visão,
Quem sou ao menos sinta
Isto no coração.

Fernando Pessoa
de Poesias 1942
arte Lienkie Lombard

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

BOI DE CARRO

 

Há muito tempo aquele boi padece.
Levando aquele carro tão pesado!
Seu próprio dono não se compadece
de vê-lo triste como um desgraçado!

Num mar de pranto, onde o tormento cresce,
pelas mãos dos perversos foi jogado!
Flor do heroísmo que desaparece,
nos abismos das cinzas do passado!

Enquanto geme carregando a canga,
a humildade, com certeza, manga,
por vê-lo padecer com tanta calma!

Só eu lamento o seu sofrer medonho
porque também carrego, assim, tristonho,
um carro de ilusões chorando n’alma!

Jansen Filho

MADRUGADA EM MEU JARDIM



Um divino clarão vem do nascente
E sobre o meu jardim calmo resvala!
Na graça deste quadro reluzente, 
A aragem fria os meus rosais embala!

Tudo desperta misteriosamente!
E a luz cresce e se expande em doce escala,
Avivando o lençol resplandecente
Da brancura dos lírios cor de opala! 

E o sol, doirando as franjas do horizonte,
Celebra a missa do romper da aurora
Na doce Eucaristia do levante! 

Da passarada escuta-se o clarim !
E a madrugada estende-se sonora,
Na aleluia de luz do meu jardim ! 

Jansen Filho
arte Alexie Zaitsev

quarta-feira, 6 de outubro de 2021

NASCIMENTO DA TARDE



 Há uma hora de sol alto, hora de 
 Meio-dia, em que a verdura dos prados se
Levanta como um grito de pés descalços.
Há uma hora desnuda, ligeira e solene como um
Render de guardas, em que o fio das baionetas
Vigilantes esplende à luz sem mistério.
Há uma hora, só uma hora, de alto e intemerato
Meio-dia, em que o sol é alto, e a vida é alta, e
Altas são as torres do futuro. Há um momento de 
Alto horizonte, em que as horas todas se perfilam
Como um exército obediente, aguardando a sua 
Ordem .Essa hora, entretanto, passa, como passam
As gaivotas sobre o mar. Essa hora, entretanto, passa
Como passam as crianças, de volta da praia ou do
Campo de folguedos. Essa hora, entretanto, passa 
Como passa o meio-dia, e o sol do meio-dia, e a luz,
Em revérbero, do meio dia. E passa o meio-dia, com sua 
Luz plena, e passa a plenitude do meio-dia, e passa a 
soberana estação sem mistério, e passa a palavra
Rude e sem medo, e passa o atrevimento dos olhos que 
Desafiam o sol em seu pináculo. E a terra, em seu giro 
se movimenta, no silêncio de seu voo sem asas. E a 
Terra passa, como passa o sol do meio-dia .E a hora  de
Esplendor intemerato passa, como passaram a terra e o sol
Do meio-dia. E as sombras crescem, para o rumo da tarde,
E as sombras, destronado o meio dia, crescem, lentas e 
Inexoráveis como a tarde que desce sobre as coisas. E as
Sombras se esticam sobre as casas, sobre as praias, sobre 
O mundo, e as sombras se esticam sobre os colégios e 
Orfanatos, sobre os hospitais, sobre os asilos, sobre o
Sofrimento do mundo. E o sol - Oh! sol do meio-dia! - se dobra
Na direção do retorno, e o crepúsculo com suas luzes brandas
Começa a tecer seus véus . E o mistério - adeus! sol do meio-
Dia, adeus! fala agora a sua língua e acende o seu 
Rito. E o mistério cobra o seu tempo, e povoa de seus vergéis
As pradarias sossegadas. E o mistério cobre de sua luz os
Tetos das casas, e fala a sua palavra sem pressa, e ensina 
A paciência ao impaciente, e a espera ao que tem fome e 
Sede de mundo. E ensina às mãos que antes se crispavam os 
                                                                                      [gestos
De despedida. E dita o silêncio ao que antes falava, e pousa 
Sobre os lábios férvidos a paz de sua marcha para a noite
Que ele traz, embalada, em seus braços.

 Hélio Pellegrino
de Minérios Domados - Poesia Reunida



terça-feira, 5 de outubro de 2021

PLENO OUTUBRO



Pouco a pouco e também muito a muito
me aconteceu a vida
e que insignificante é este assunto:
estas veias levaram
sangue meu que poucas vezes vi,
respirei o ar de tantas regiões
sem guardar para mim uma amostra de nenhum
e afinal de contas já o sabem todos:
ninguém leva nada de seu
e a vida foi um empréstimo de ossos.
O belo foi aprender a não se saciar
da tristeza nem da alegria,
esperar o talvez de uma última gota,
pedir mais ao mel e às trevas.


Talvez fui castigado:
talvez fui condenado a ser feliz.
Fique afirmado aqui que ninguém
passou perto de mim sem me compartir.
E que meti a colher até o cotovelo
numa adversidade que não era minha,
no padecimento dos outros.
Não se tratou de palma ou de partido
mas de pouca coisa: não poder
viver nem respirar com essa sombra,
com essa sombra de outros como torres,
como árvores amargas que o enterram,
como pancadas de pedra nos joelhos.


A tua própria ferida se cura com pranto,
a tua própria ferida se cura com canto,
mas na tua mesma porta se dessangra
a viúva, o índio, o pobre, o pescador,
e o filho do mineiro não conhece
o seu pai entre tantas queimaduras.
Muito bem, mas o meu ofício
foi a plenitude da alma:
um ai de gozo que te corta a respiração,
um suspiro de planta derrubada
ou o quantitativo da ação.


Eu gostava de crescer com a manhã,
embeber-me de sol, com pleno gozo
de sol, de sal, de luz marinha e onda,
e nesse avanço da espuma
fundou meu coração seu movimento:
crescer com o profundo paroxismo
e morrer se derramando na areia.


Pablo Neruda
de Antologia Poética
créditos para o blog do Castorp
https://blogdocastorp.blogspot.com

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

CHAMAR A SI TODO O CÉU COM UM SORRISO



que o meu coração esteja sempre aberto às pequenas
aves que são os segredos da vida
o que quer que cantem é melhor do que conhecer
e se os homens não as ouvem estão velhos

que o meu pensamento caminhe pelo faminto
e destemido e sedento e servil
e mesmo que seja domingo que eu me engane
pois sempre que os homens têm razão não são jovens

e que eu não faça nada de útil
e te ame muito mais do que verdadeiramente
nunca houve ninguém tão louco que não conseguisse
chamar a si todo o céu com um sorriso

E. E. Cummings,  de “livro de poemas”
Tradução de Cecília Rego Pinheiro