domingo, 20 de maio de 2018

Não me despeço...


Não me despeço de ti, Poesia,
mais fácil seria despedir-me de mim
se me deixasses.
És a  semente.Continuas
indiferente a tudo o que não seja
a fome de teus frutos.Eles erigem
múltiplos mundos e neles te transformas.
Devolvida à luz, a semente morta
é árvore tenra.
Dizer-te adeus: imperdoável mentira.
Encontro-me contigo em mil variantes do dia
em mil disfarces te reconheço.
Que importa o nome escolhido, a língua
o homem a mulher que cinges amorosamente?
Eu te amo, é tudo.Nessa unidade
o que muda persiste.Zenon e Parmênides
nela se encontram, ambos tinham razão.
É o voo parado a música liberta
de suas partituras.É o Deus sem insígnia,
o que é sem querer: um súbito riso
contatos de amor voando nas sementes
da chuva primaveril.

Dora Ferreira da Silva
In Cartografia do Imaginário
arte Dorina Costras

Entre os pássaros...


Entre os pássaros se esgueiram
como se deixassem na sombra

Os perfis de seda
não de aves, mas de anjos:
não anjos expulsos por perfídia
mas desejosos de caminhar pelos caminhos
a modo de homens  isentos de cansaço.
Anjos que crianças veriam
sem medo, a elas semelhantes.
Mulheres sonhadoras os julgariam
amados ausentes enfim reencontrados

Não se despedem, sussuram melodiosamente:
- Junto à fonte estarei e tu, comigo.
Há que esperar. Tal beleza os reveste nesse instante
que desviamos  o olhar.

Dora Ferreira da Silva

Estações - Outono


Azul no céu o outono;
nas folhas, vermelho
e incerto o coração.
Misturam-se as cores da música
brilhantes no piano
ocres no violoncelo
entre o sim e o não.
Tão longe as cores ficaram
nada ao alcance da mão
esquecidos os nomes, timbres de voz
somos duas a sós:
minha alma no corpo estrangeiro;
passa um vento ligeiro
(leva a minha inspiração?)
Não sei se ouves a tristeza
das pálpebras fechadas
da abandonada beleza
em sendas escondidas
onde andamos. E era vida.
Veio o pasmo e a brandura
desses lábios tão cerrados
sepultura
em seu outono calado.

Dora Ferreira da Silva
In Cartografia do Imaginário