quarta-feira, 13 de novembro de 2019

A ROSA DO MUNDO



Quem sonhou que a beleza passa como um sonho?
Por estes lábios vermelhos, com todo o seu magoado orgulho,
Tão magoados que nem o prodígio os pode alcançar,
Tróia desvaneceu-se em alta chama fúnebre,
E morreram os filhos de Usna.

Nós passamos e passa o trabalho do mundo:
Entre humanas almas que se agitam e quebram
Como as pálidas águas e seu fluxo invernal,
Sob as estrelas que passam, sob a espuma do céu,
Vive este solitário rosto.

Inclinai-vos, arcanjos, em vossa incerta morada:
Antes de vós, ou de qualquer palpitante coração,
Fatigado e gentil alguém esperava junto ao seu trono;
Ele fez do mundo um caminho de erva
Para os seus errantes pés.

William Butler Yeats
 em "W.B.Yeats uma antologia".
 Selecção e tradução de José Agostinho Baptista.
arte Marchella Piery

terça-feira, 12 de novembro de 2019

SONETO


"Carta Íntima"

Que este soneto, assim, feito ao correr da pena
Possa, filha, dizer-te o que a voz te não diz,
Porque este afeto excede a linguagem terrena,
E não tenho expressões se te vejo infeliz.

Se a vida te corre, acaso, alegre e amena,
Ouve, em vez da minha, as mil vozes hostis
Em que buscam, os teus, nos infligir a pena
De curvarmos a alguém, humildes a cerviz.

Tu, que foste, que ainda és e que serás, por certo,
Aquela que, jamais, do interesse ouve a voz
Mais longe estás de mim quando de ti estou perto!

Deves, porém, saber que, quando fico a sós,
A própria multidão, para mim, é um deserto,
Porque o mundo não és, nem eu sou: somos nós!

Emílio de Menezes
de Esparsos e inéditos/Poesia lírica
arte Pino Giuseppe Dangelico


segunda-feira, 11 de novembro de 2019

SOL DE OUTONO



 Declínio augusto de uma mocidade,
 Tarde melhor que esplêndida manhã,
 Fruto supremo na maturidade
 E alma da carne sazonada e sã;

 Argirócomo tronco, inda te invade
 Juvenilmente, sápida e louçã,
 A seiva forte em toda intensidade
 Do sangue de imortal deusa pagã!

 Nada te abate o orgulho da beleza,
 Pois tens, dentro de ti, o áureo fulgor
 Do Belo, eterno como a Natureza!

 A arte emprestou- te o mágico vigor
 Da forma que persiste, altiva e ilesa,
 A rir da Morte e a perpetuar o Amor.

Emílio de Menezes
de Últimas Rimas 

GIRASSOL




 A AMADEU AMARAL

 Florir no descampado ou no úmido recanto
 De alguma ruína, ou mesmo em áspero alcantil,
É um orgulho que tem o redoirado helianto
Dês que da terra emerge a plúmula sutil

 Quando ele desabrocha entre os glastos e o acanto,
 Entre os mil tinhorões e as passifloras mil,
Tem-se à conta de um sol, nascido por encanto
Ao topo senhorial do tomentoso hastil.

 É de vê-lo medir, a força e o valimento,
 Do orgulho vegetal, do seu orgulho em prol,
 Ante o rival senhor de terra e firmamento!

 E de vê-lo, tenaz, de arrebol a arrebol,
 Do grande astro seguindo o régio movimento,
 O áureo disco volver para encarar o sol!

Emílio Menezes 
de Últimas Rimas

sábado, 2 de novembro de 2019

POENTE


Que podes mais dizer-me que não saiba, 
Veia do sol sangrada para a terra, 
Manso esgarçar de névoa refrangida 
Entre o azul do mar e o céu vermelho? 
Já há tantos poentes na lembrança, 
Tantos dedos de fogo sobre as águas, 
Que todos se confundem quando, noite, 
Posto o sol, se fecham os teus olhos.  

- José Saramago
 em "Os poemas possíveis".

INTEGRAL




Por um segundo
o, apenas, não ser eu:
Ser bicho, pedra, sol ou outro homem,
Deixar de ver o mundo desta altura,
Pesar o mais e o menos doutra vida.

Por um segundo, apenas, outros olhos,
Outra forma de ser e de pensar,
Esquecer quanto conheço, e da memória
Nada ficar, nem mesmo ser perdida.

Por um segundo, apenas, outra sombra,
Outro perfil no muro que separa,
Gritar com outra voz outra amargura,
Trocar por morte a morte prometida.

Por um segundo, apenas, encontrar
Mudado no teu corpo este meu corpo,
Por um segundo, apenas, e não mais:
Por mais te desejar, já conhecida.

José Saramago
em "Os poemas possíveis".


sexta-feira, 1 de novembro de 2019

PARA UM AMOR QUE NÃO VEIO



Tenho sede de ti
meu amor
mas desconheço o som de teus passos
desconheço
a textura (provavelmente morna)
de teus cabelos - desconheço.

Tenho tanta sede de ti
amor - areia soprada pelo vento
teia esgarçada, sonho desperto
bruscamente - tanta sede
e tão abissal
e tão atávica
e tão desencontrada
nestes vinte e seis anos de procuras 
vãs.

Ah
quero fechar meus olhos
quero despertar logo e
bruscamente
deste denso sono em ti:
amado, amada
- desconhecidos 
alados.

Caio Fernando Abreu
 Poesias nunca publicadas 
arte Dorina Costras

STONE SONG



Eu gosto de olhar as pedras
que nunca saem dali.
Não desejam nem almejam 
ser jamais o que não são.
O ser das pedras que vejo 
é só ser, completamente.
Eu quero ser como as pedras
que nunca saem dali.
Mesmo que a pedra não voe,
quem saberá de seus sonhos?
O sonhos não são desejos,
os sonhos sabem ser sonhos.
Eu quero ser como as pedras
e nunca sair daqui.
Sempre estar, completamente ,
onde estiver o meu ser.

Caio Fernando Abreu
de Poesias nunca publicadas
Porto Alegre, 1996

GLÓRIA



Depois do Inverno, morte figurada,
A primavera, uma assunção de flores.
A vida
Renascida
E celebrada
Num festival de pétalas e cores.

Miguel Torga