terça-feira, 31 de outubro de 2017

Canção do meu olhar




e meu olhar
te disser além, muito além
do que queres saber,
desvia.

Se meu olhar
me trair
e deixar transparecer
toda a ternura,
que tenho por ti,
disfarça.

Se meu olhar
tentar ainda assim
te conquistar e seduzir
e o brilho ardente
te incomodar,
dissimula.

Se meu olhar,
em teu olhar, encontrar
a mesma sintonia,
por favor, sorria.

Dúnia de Freitas
In Danada

arte Dorina Costras




“Te desejo uma fé enorme, em qualquer coisa, não importa o quê, como aquela fé que a gente teve um dia. Me deseja também uma coisa bem bonita, uma coisa qualquer maravilhosa, que me faça acreditar em tudo de novo, que nos faça acreditar em tudo outra vez.”


(Caio Fernando Abreu) 



"Dizem que a gente tem o que precisa. Não o que a gente quer. Tudo bem. Eu não preciso de muito. Eu não quero muito. Eu quero mais. Mais paz. Mais saúde. Mais dinheiro. Mais poesia. Mais verdade. Mais harmonia. Mais noites bem dormidas. Mais noites em claro. Mais eu. Mais você. Mais sorrisos, beijos e aquela rima grudada na boca. Eu quero nós. Mais nós. Grudados. Enrolados. Amarrados. Jogados no tapete da sala. Nós que não atam nem desatam. Eu quero pouco e quero mais. Quero você. Quero eu. Quero domingos de manhã. Quero cama desarrumada, lençol, café e travesseiro. Quero seu beijo. Quero seu cheiro. Quero aquele olhar que não cansa, o desejo que escorre pela boca e o minuto no segundo seguinte: nada é muito quando é demais.''

(Caio Fernando Abreu)

Oriente



manda-me verbena ou benjoim no próximo crescente
e um retalho roxo de seda alucinante
e mãos de prata ainda  ( se puderes)
e se puderes mais, manda violetas
(margaridas talvez, caso quiseres

manda-me Osíris no próximo crescente
e um olho escancarado de loucura
(um pentagrama, asas transparentes)

manda-me tudo pelo vento;
envolto em nuvens, selado com estrelas
tingindo de arco-íris, molhado de infinito
(lacrado de oriente, se encontraste)

Caio Fernando Abreu
In Poesias Nunca Publicadas de Caio F.Abreu

domingo, 29 de outubro de 2017

Correm velozes os ventos



Correm velozes os ventos
atrás da sombra dos homens, dos rebanhos
que atravessam os campos devassados
numa ordem silenciosa e peregrina
em busca de outras pastagens, outras paragens.
 
Ontem foi a tempestade. Amanhã será
a boda dos amantes. Um dia, em repente
de tragédia será a maré grave dos temores,
a prostração da febre que vem dos pântanos
e alucina os camponeses fazendo o que
nenhum vinho ou mágoa foi capaz de fazer.
 
A morte ronda a cama da velhice
derramando os odores de cera
das velas queimadas em imensas vigílias.
 
Voltam os ventos com o pólen, com o rumor
das bocas que pronunciaram só metade
dos segredos que o outono diz à terra.  
 
José Jorge Letria
In Percurso do Método

Critica da razão impura



Impura razão a que sustenta os medos
e os torna enleantes e perversos
a invadirem o redil do sono
com as suas sombras bicéfalas
 
impura razão a que usa o verso regular
para fingir-se operosa e criadora,
a que usa uma cortina negra
para dissimular-se e tomar-se de enganos
 
impura razão a que se perfuma
de crisântemo ou de jasmim
e se eterniza num livro ou numa lua
e mata de assombro os caminhantes.
 
José Jorge Letria
In Percurso do Método

Os livros



Apetece chamar-lhes irmãos,
tê-los ao colo,
afagá-los com as mãos,
abri-los de par em par,
ver o Pinóquio a rir
e o D. Quixote a sonhar,
e a Alice do outro lado
do espelho a inventar
um mundo de assombros
que dá gosto visitar.
Apetece chamar-lhes irmãos
e deixar brilhar os olhos
nas páginas das suas mãos


José Jorge Letria
arte Charles James

Estações



Aprendi os cheiros
Do alecrim e da hera
E ao azul do céu
Chamei Primavera.

Encontrei um fruto
Na concha da mão
E à sede da água
Dei um nome: Verão.

Descobri o sol com olhos de sono,
À tristeza das folhas dei o nome de Outono
Aprendi os modos do bico mais terno:
Um cão de peluche
Com o frio do Inverno.

Juntei as estações
Com pés de magia
E à soma das quatro
Chamei poesia.

José Jorge Letria
http://fellingsfellings.blogspot.com/

sábado, 28 de outubro de 2017

Tempestade



Suspiram as rosas
e surpreendidas e assustadas
esconderam-se nos seus veludos.

Não eram borboletas!
Nem rouxinóis!
Não eram pavões que passavam pelo jardim.

De um céu ruidoso
caíam essas grandes asas luminosas e inquietas.
Relâmpagos azuis voavam entre os canteiros,
retalhando os lagos.

Tremiam veludos e sedas,
e o pólen delicado,
na noite violenta,
alta demais,
despedaçada,
despedaçante.

Ah, como era impossível
suster a forma das rosas!

Cecília Meireles
de Poemas Escritos na Índia

Epigrama



Narciso, foste caluniado pelos homens,
por teres deixado cair, uma tarde, na água incolor,
a desfeita grinalda vermelha do teu sorriso.

Narciso, eu sei que não sorrias para o teu vulto, dentro da onda:
sorrias para a onda, apenas, que enlouquecera, e que sonhava
gerar no ritmo do seu corpo, ermo e indeciso,

a estátua de cristal que, sobre a tarde, a contemplava,
florindo-a para sempre, com seu efêmero sorriso...

Cecília Meireles
In Vaga Música
arte Nicolas Bernardt Lepicie

Campo



Vem ver o dia crescer entre o chão e o céu,
o aroma dos verdes campos ir sendo orvalho na alta lua.

Os bois deitados olham a frente e o longe, atentamente,
aprendendo alma futura nas harmonias distribuídas

O mesmo sol das terras antigas lavra nas pedras estrelas claras.
Nem as nuvens se movem.Nem os rios se queixam.
Estão deitados, mirando-se,dos seus opostos lugares,
e amando-se em silêncio, como esposos separados.

Neste descanso imenso, quem te dirá que viveste em tumulto,
e houve um suspiro em teu lábio, ou vaga lágrima em teus dedos?

Morreram as ruas desertas e os ávidos habitantes
ficaram soterrados pelas paixões que os consumiam.

A brisa que passa vem pura, isenta, sem lembranças.
Tece carícia e música nos finos fios do arrozal.

Em tua mão quieta, pousarão borboletas silenciosas.
Em teu cabelo flutuarão coroas trêmulas de sombra e sol.

Tão longe, tão mortos,jazem os desesperos humanos!
E os corações perversos não merecem o convívio serenos das plantas.

Mas teus pés andarão por aqui entre flores azuis,
e o perfume te envolverá como um largo céu.

O crepúsculo que cobre a memória, o rosto, as árvores,
inclinará teu corpo, docemente, em sua alfombra.

Acima do lodo dos pântanos, verás desabrochar o vôo branco das garças.
E, acima do teu sono, o vôo sem tempo das estrelas.

Cecília Meireles
In Mar Absoluto e Outros Poemas
arte Márcio Camargo


Não penseis que seja do tempo ou do vento ou da chuva:
nada disso -  os jasmins caídos
foram destroçados por uma só borboleta.

Chegou como um invasor, grande, amarela, poderosa,
assaltou com avidez as flores tranquilas,
brancas em seu leito verde,
deixou-as cair, passou adiante,
saciou-se com desespero,
voou para longe,
desapareceu por outros jardins,
deixou despregadas as pequenas corolas
que rolaram como estrelas
e aí estão perfeitas e brancas, sem saberem que já estão mortas.

Tudo isso para nós foi um brevíssimo instante:
não sei, no tempo das borboletas e das flores,
no alto relógio de Deus.

Cecília Meireles
In Palavras e Pétalas
foto por 

Bem de Madrugada


Bem de madrugada,
vamos ver os homens lavrarem os campos.

Antes que o sol derrame
torrentes de fogo, vamos ver os homens,
bem de madrugada,
em seu trabalho eterno.

Muito de madrugada,
vamos ver os bois, reis da terra de outrora.

Vamos ver o mistério 
dos cestos, das rodas, da terra entreaberta,
muito de madrugada,
e os ritos seculares.

Bem de madrugada.
Deuses?Sacerdotes?Mágicos?Patriarcas?

Dormimos e sonhamos?
Os homens esposam terra, semente,água,
bem de madrugada,
com reverentes gestos.

Muito de madrugada.
Quando a sombra dos bois é impalpável charrua.

E há um silêncio redondo:
úmida suspira a terra perfumada
entre horizontes de ouro.

Bem de madrugada.

Cecília Meireles
de Poemas Escritos na Índia
arte Van Gogh

  



Creio nos anjos que andam pelo mundo ,
creio na deusa com olhos de diamante .
Creio em amores lunares com piano de fundo ,
Creio nas lendas , nas fadas , nos atlantes .
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes .
Creio que tudo é eterno num segundo .
Creio nun céu futuro que houve dantes . 
Creio nos deuses de um astral mais puro ,
creio na flor humilde que se encosta ao muro ,
creio na carne que enfeitiça o além .
Creio no incrível , nas coisas assombrosas ,
Na ocupação do mundo pelas rosas ,
Creio que o amor tem asas de ouro .
 Amém.

Natália  Correia
arte Liliya Popova

Saudade


Um momento gravado na distância,
uma relíquia oculta no passado,
um pedacinho azul de nossa infância
um doce quê, por nós amado.
Uma ternura feita de constância,
um transitório afeto, de um beijo alado...
uma sensação pura de inocência,
um resquício agridoce de pecado;
Uma vida que passou em nossa vida,
uma flor que guardaste e já secou...
uma carta perfumada e recebida;
Um desejo de não querer...querendo,
uma renúncia triste que chorou...
isto tudo é saudade ...revivendo.

Esther Laus Bayer
In A Décima Carta - Laus. Apenas.

Intimidade



No coração da mina mais secreta,
No interior do fruto mais distante,
Na vibração da nota mais discreta,
No búzio mais convolto e ressoante,

Na camada mais densa da pintura,
Na veia que no corpo mais nos sonde,
Na palavra que diga mais brandura,
Na raiz que mais desce, mais esconde,

No silêncio mais fundo desta pausa,
Em que a vida se fez perenidade,
Procuro a tua mão, decifro a causa
De querer e não crer, final, intimidade.

José Saramago
tela Liliya Popova

terça-feira, 24 de outubro de 2017

Canção






O leve vento me leve
Para as praias de além-mar.
O leve vento me leve...

Quero um sopro de inocência
Para em luzes me banhar.
Onde estaria a saudade
Que afaga os caminhos mortos
E treme na luz das velas
Nos velórios de além mar?
Quero fugir da loucura
Que prende os corpos no mar.

Em tudo que me esperava
Jamais pureza encontrei.
Fui gemido, tédio, noite,
Fui vagabundo e fui rei.
E me buscando no mundo

No mundo não me encontrei.
Que o leve vento me leve
Para as praias de além-mar.
Que o leve vento me leve,
Me deite em praias macias,
Me dê as bocas macias
Das namoradas do mar.
Quero um sopro de inocência
Para em luzes me banhar.

Alphonsus de Guimaraens Filho
In Nostalgia dos Anjos
arte Dima Dimitriev

Poema sonhado





Se não for pela poesia, como crer na eternidade?
Os ossos da noite doem nos mortos.
A chuva molha cidades que não existem.
O silêncio punge em cada ser acordado pelos cães invisíveis
[do assombro.
Os ossos da noite doem nos vivos.
A escuridão lateja como um seio. 
E uma voz (de onde vem?) repete incessante, incessantemente:
Se não for pela poesia, como crer na eternidade.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Silencio amoroso II



Preciso do teu silêncio
cúmplice
sobre minhas falhas.
Não fale.
Um sopro, a menor vogal
pode me desamparar.
E se eu abrir a boca
minha alma vai rachar.
O silêncio, aprendo,
pode construir. É um modo
denso/tenso
- de coexistir.
Calar, às vezes,
é fina forma de amar.

Affonso Romano de Sant'Anna
arte  Willem Haenraets

Silêncio amoroso




Deixa que eu te ame em silêncio.
Não, pergunte, não se explique ,deixe
que nossas línguas se toquem, e as bocas
e a pele
falem seus líquidos desejos.

Deixa que eu te ame sem palavras
a não ser aquelas que na lembrança ficarão
pulsando para sempre
como se amor e vida
fossem um discurso
de impronunciáveis emoções.

A.Romano de Sant'Anna
In Epitáfio para o Século XX
Tela Love-signed by Harvey Edwards

Se é paixão me nego




Se é paixão, me nego.
já resvalei, a alma em pelo
nesse áspero despenhadeiro.
Se é paixão, não quero.
Conheço seus espinhos  de mel,
sei aonde conduz
embora prometa os céus.

Se é paixão, desculpe-me,  não posso
conheço suas insônias
e a obsessão.

Se é paixão me vou, não devo,
não adiantam teus apelos.
Resistirei, porque aí
morri mil vezes.
Paixão é arma de três gumes,
ao seu corte estou imune.

Se é paixão me nego 
e não receio que me acuses
de medo. Do desvario
conheço todos os segredos.

Se é paixão recuso-me
e sinto muito,
pois foi há custo
que saí do labirinto.

Affonso Romano de Sant'Anna
tela Dorina Costras

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

A Irrigação do jardim



Ah, regar o jardim para animar o verde!
Dar água às plantas sedentas! Ponha mais do que o bastante,e 
não esqueça os arbustos, nem tampouco 
os sem bagas, avaros
e cansados. E não passe por alto,
entre as flores, as ervas daninhas que também
têm sede.Não regue só
a relva fresca, nem a esturricada só;
refresque o chão nu, também. 

Bertolt Brecht
In Poemas e Cancões
tradução Geir Campos
arte Ross Turner



Tudo Muda



Tudo muda. De novo começar
podes, com o último alento.
O que acontece, porém, fica acontecido: e
a água que pões no vinho, não podes mais
separar.

O que acontece, fica acontecido: a água
que pões no vinho, não podes
mais separar. Porém,
tudo muda: com o último alento podes
de novo começar.


Bertolt Brecht
Tradução Geir Campos

Louvação da desmemória



Boa é a desmemória!
Sem ela, como iria
deixar o filho a mãe que lhe deu de mamar,
que lhe emprestou força aos membros,
e que o retinha para o experimentar.

Ou como iria o aluno deixar o mestre
que lhe emprestou o saber?
Com o saber emprestado
cumpre ao discípulo pôr-se a caminho.

Na casa velha
os novos moradores entram;
se lá estivessem ainda os que a construíram,
seria a casa pequena demais.

O forno esquenta, e do oleiro
ninguém se lembra mais. O lavrador
não reconhece o pão depois de pronto.

Como levantar-se de novo o homem de manhã,  sem
o esquecimento que apaga os rastros da noite?
Como iria, quem foi ao chão seis vezes,
levantar-se pela sétima vez
para amanhar o pedregoso chão,
para subir ao perigoso céu?

É a fraqueza da memória que dá
força à criatura humana.

Bertolt Brecht
tradução de Geir Campos
arte Dima Dimitriev

Aprende o que é mais simples! Para aqueles cujo momento chegou,
nunca é tarde demais.
Aprende o ABC: não basta, mas aprende-o! Não desanimes!
Tens de assumir o comando!

Aprende, homem no refúgio!
Aprende, homem na prisão!
Mulher na cozinha, aprende!
Aprende, sexagenário!
Tens de assumir o comando!
Procura a escola, tu que não tens casa!
Cobre-te de saber, tu que tens frio!
Tu, que tens fome, agarra o livro: é uma arma!
Tens de assumir o comando!

Não tenhas medo de fazer perguntas:
não te deixes levar por convencido,
vê com teus próprios olhos!
O que não sabes por experiência própria,
a bem dizer, não sabes.
Tira a prova da conta:
és tu quem vai pagar!
Aponta o dedo sobre cada item,
pergunta: como foi parar aí?
Tens de assumir o comando!

Bertolt Brecht
de Poemas e Canções
tradução de Geir Campos
arte  Diane Leonard