sábado, 30 de junho de 2018

Os Cavalos da Noite


Os cavalos da noite galopando 
de crinas soltas contra a luz da lua   
eram fantasmas breves dominando   
os sonhos de um menino solitário. 

Um menino sem forças contra a noite  
sonhava os seus cavalos assustados   
e se inventava cavaleiro andante   
dono dos seus caminhos pela vida. 

Campeava as distâncias descuidado 
e armado pelo sono ia amansando   
no coração da treva os seus temores. 

E revivia a noite no mistério
dos árdegos cavalos renovando   
o seu campo de sonho solitário

H.Dobal

Inverno


Um horizonte de chuvas demorado
de seus verões levanta os campos
e o inverno se faz de tantas noites
onde se perde o curso dos riachos.

A pastagem rasteira retocada
pelas ovelhas da manhã não cresce
nesses perdidos campos da memória
onde um menino vive a infância.

Cresce na solidão de outros meninos
se preparando agora para o exílio
de estrangeira cidade onde mais tarde

confinados ao sonho pensarão
no abôio das chuvas na doçura
dos campos trnsformados pelo inverno.

H.Dobal 
In O Tempo Consequente

Noite de Frio



Julho:
a lua tira os véus
e se dilata.
Roça pelos de prata
sobre arranha-céus.

Flora Figueiredo
In Estações 

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Jardim de Inverno




Chega o inverno.Um esplêndido ditado
dão-me as lentas folhas
vestidas de silêncio e de amarelo.
Sou um livro de neve,
uma larga mão, uma pradaria,
um círculo que espera,
que assim pertenço à terra e a seu inverno.

Cresceu o rumor do mundo na folhagem,
ardeu depois o trigo constelado
por flores rubras como queimaduras,
logo chegou o outono estabelecendo
a escritura de vinho:
e tudo passou, foi céu passageiro
a taça do estio,
e se apagou a nuvem navegante.

Eu esperei no balcão, tão enlutado
como ontem nas heras da minha infância,
que a terra estendera
suas asas no meu amor desabitado.

Eu soube que a rosa feneceria
e este caroço do transitório pêssego
voltaria para dormir, germinar:
e me embebedei com a taça de ar
até que todo o mar se fez noturno
e o amanhecer foi convertido em cinza.

Vive a terra agora
tranquilizando o seu interrogatório,
estendida a pele do seu silêncio.
Volto a ser agora
o taciturno que chegou de longe
envolto em chuva fria e pelos sinos:
devo para a pura morte da terra
a intenção das minhas germinações.

Pablo Neruda
In Jardim de Inverno
arte E. J. Paprocki

A Chegada do Inverno




Manhã de outono, noite de inverno:
 duas estações repartem ao meio, o dia.
 O fôlego renovado do vento faz dançar folhas órfãs.
 A força retocada do frio faz tremer nuas árvores.
 
E, enquanto a noite suspira neblinas,
 estrelas pendem de cansaço e sono.
 
Antecipados poentes romanceiam encontros,
 e o sol seduz uma lua encabulada:
  De-cifra-me que eu te melodio...”

Marla de Queiroz

domingo, 24 de junho de 2018



O que eu adoro em ti 
Não é a tua beleza 
A beleza é em nós que existe 
A beleza é um conceito 
E a beleza é triste 
Não é triste em si 
Mas pelo que há nela de fragilidade e incerteza 

O que eu adoro em ti 
Não é a tua inteligência
Não é o teu espírito sutil 
Tão ágil e tão luminoso 
Ave solta no céu matinal da montanha 
Nem é a tua ciência 
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti 
Não é a tua graça musical
Sucessiva e renovada a cada momento 
Graça aérea como teu próprio momento 
Graça que perturba e que satisfaz 

O que eu adoro em ti 
Não é a mãe que já perdi 
E nem meu pai 

O que eu adoro em tua natureza
Não é o profundo instinto matinal 
Em teu flanco aberto como uma ferida
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que adoro em ti lastima-me e consola-me: 
O que eu adoro em ti é a vida.

Manuel Bandeira
In O Ritmo Dissuluto
arte Nicolae Grigorescu (Romanian,1838-1907)

Enquanto Morrem as Rosas



Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.
Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde...

Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...

Morre o teu sonho? ...Nesse instante o pensamento
Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize: neste momento
Morre o teu sonho?...

Manuel  Bandeira
In A Cinza das Horas

Sob o céu todo estrelado




As estrelas, no céu muito límpido, brilhavam, divinamente
 distantes.
Vinha da caniçada o aroma amolecente dos jasmins.
E havia também, num canteiro perto, rosas que cheiravam a jambo.
Um vaga-lume abateu sobre as hortênsias e ali ficou luzindo
 misteriosamente.
A parte as águas de um córrego contavam a eterna história sem
 começo nem fim.
Havia uma paz em tudo isso...
(Era de resto o que dizia lá dentro o meigo adágio de Haydn.)
Tudo isso era tão tranquilo...tão simples...
E deverias dizer que foi o teu momento mais feliz.

Petrópolis,1921
Manuel Bandeira
In O Ritmo Dissoluto


sábado, 23 de junho de 2018

O Mar do Crepúsculo


Eis a terra que o crepúsculo banha,
Eis as orlas do Mar Amarelo;
Por onde se ergueu e aonde se abala,
São estes os ocidentais mistérios.

Noite após noite, seu tráfego purpúreo
Cargas de opala pelo cais dispersa;
E mercadores ponderam sobre horizontes,
Calculam rumos e somem em barcos de sortilégio.

Púrpura –
A cor das rainhas é esta –
A cor de um sol, no poente;
- Ainda, além dessa, o âmbar;
E o berilo – se o dia vai a meio.

Quando à noite, porém, amplidões de aurora
Atingem, de súbito, os homens –
Essa cor, e o feitiço, Mas, a Natureza
Reserva um lugar, também, para os cristais de iodo.

Emily Dickinson
in Poemas de Emily Dickinson

Azaleia



Às vezes diamante,
um pouco rubi,
talvez ametista,
uma das joias predileta dos paulistas.
Jaça nenhuma, a cor é tanta
que, quando no jardim explode, a planta
até parece tesouro na bateia.
Aprumem-se, caros poetas e floristas,
pois que é chegado o tempo de Azaleia!

Flora Figueiredo
de Estações

domingo, 17 de junho de 2018

Inverno




Até bem tarde dorme o sol de inverno,
sol dorminhoco, causticante e gélido,
luzindo pouco e, após algumas horas,
logo se pondo, avermelhada bola.


Antes que os astros deixem o firmamento,
no escuro da manhã eu já me ergo.
E, tiritando, ainda estão despido,
me lavo e visto à luz da vela fria.

Sento-me ao pé do fogo deleitável,
nele aquecendo os ossos congelados;
ou, com um trenó de renas, eu exploro
frios arredores para além da porta.

Para sair, a pajem então me envolve
com o meu gorro e ainda um cahecol .
Queima o meu rosto um vento que arrepia,
fria pimenta ardendo em meu nariz.

Negros meus passos sobre o chão prateado;
denso o meu hálito a soprar gelado.
E casa e árvores, colina e lago,
qual um bolo de noiva, estão glaçados.

Robert Louis Stevenson
arte Van Gogh

Fogueiras de Outono


Veja nos outros jardins
e através do vale todo
a fumaça, que é uma trilha
dessas fogueiras de outono!

Se  o ameno verão findou
e findaram as suas flores,
já ardem os rubros fogos,
e fumos cinzentos sobem.

Cantem então algo radioso,
a canção das estações:
flores em meio a verões,
fogueiras durante outonos!

Robert Louis Stevenson
(1850 - 1894)
tela John Everett Millais

sábado, 16 de junho de 2018

Acalanto



Fecho meus olhos para o teu canto
e ouço a cantiga vibrando no ar:
asas de vento, sons de acalanto,
a luz do dia no próprio encanto
que o sol da vida te faz cantar.

Fecha teus olhos para o meu canto
e ouve o marulho longe de um mar,
lançando à praia do desencanto
todo o meu sonho desfeito em pranto
que o sal da vida me faz chorar.

Gilberto Mendonça Telles
In Poemas Reunidas

Soneto ao Inverno



Inverno, doce inverno das manhãs 
Translúcidas, tardias e distantes 
Propício ao sentimento das irmãs 
E ao mistério da carne das amantes: 


Quem és, que transfiguras as maçãs 
Em iluminações dessemelhantes 
E enlouqueces as rosas temporãs 
Rosa-dos-ventos, rosa dos instantes? 

Por que ruflaste as tremulantes asas 
Alma do céu? o amor das coisas várias 
Fez-te migrar - inverno sobre casas! 

Anjo tutelar das luminárias 
Preservador de santas e de estrelas... 
Que importa a noite lúgubre escondê-las?
Vinícius de Moraes
Londres, 1939

Dia Cinzento de inverno




É um dia cinzento de inverno
e sem luz quase em seu lugar:
velho ranzinza, ele não quer
que ninguém lhe venha falar.

Ouve o rio jovem correr
cheio de ímpeto e paixão:
vê nessa forte impaciência
uma inútil ostentação.

Aperta os olhos com desdém,
poupando um pouco mais de luz,
e sobre o rosto cai-lhe a neve
a encobri-lo como um capuz.

O estridular das gaivotas
irrita-lhe o sonho de velho,
tanto quanto na árvore calva
a briga ruidosa dos melros.

Ri-se de todas essas coisas,
em sua imensa presunção
- e vai deixando cair neve
até chegar a escuridão.

Hermann Hesse
In Andares

sexta-feira, 15 de junho de 2018

Quando te dói a alma



Quando estás descontente,
quando perdes a calma
e odeias toda a gente,
quando te dói a alma,

quando sentes, cruel,
o prazer da vingança,
quando um sabor a fel
te proíbe a esperança,

quando as larvas do tédio
te embotam os sentidos,
e o mal é sem remédio
e a ninguém dás ouvidos,

nega, recusa a dor,
abandona o deserto
das almas sem amor
e mergulha o olhar
em tudo o que está certo,
o mar, a fonte, a flor.

Fernanda de Castro
In Poesia II
arte Dorina

A Noite


Ave do céu, a noite abriu as asas
e a sombra adormeceu os sons e as cores.
Um manto negro-azul vestiu a tarde,
evola-se em perfume a alma das flores.

Penteia a Lua os pálidos cabelos,
em madeixas, em fios de luar.
Agora toda a música é silêncio,
silêncio grave, sonho a flutuar.

Pulsa em surdina o coração do vento,
embalando em cadência, a folha, o ninho.
Flor-de-lótus no lago adormecido,
o cisne fecha as pétalas de arminho.

Na terra viva de milhões de vidas,
as sementes palpitam e as raízes:
rasgam-lhe a pele ardente as mãos dos homens,
tapam-lhe as mãos da chuva as cicatrizes.

Um frêmito perpassa, o vento acorda,
a chuva cai, a noite fecha as asas…
Estrela a estrela, apagam-se as estrelas,
a manhã, casa a casa, acende as casas.

A cor e os sons despertam; canta a fonte
um canto de água, balbuciante e vago.
Surgem da noite os sete véus da aurora,
desfolha-se o arco-íris sobre o lago.

Fernanda de Castro
In 70 Anos de Poesia, 1989

Além da Terra, além do céu





Além da Terra, além do Céu,
no trampolim do sem-fim das estrelas,
no rastro dos astros,
na magnólia das nebulosas.
Além, muito além do sistema solar,
até onde alcançam o pensamento e o coração,
vamos!
vamos conjugar
o verbo fundamental essencial,
o verbo transcendente, acima das gramáticas
e do medo e da moeda e da política,
o verbo sempreamar,
o verbo pluriamar,
razão de ser e de viver.


Carlos Drummond de Andrade
arte Daniel F. Gerhartz

segunda-feira, 11 de junho de 2018

O Inverno



O inverno açoita lá fora.
É hora de acender o lume
e te dar meu colo, como de costume.
Deita teu sonho e enche tua taça
porque a noite cansa, a estrela passa
e a lua se apaga, morta de ciúme.

Flora Figueiredo
In O trem que traz a noite
arte Gustav Klimt

O Inverno



A quem me julga álgido, indiferente,
ofereço como atenuante a sugestão
do beijo no beijo, o corpo no corpo
e a mão aquecida em outra mão.
Sou o quadrante menos quente,
mas em contrapartida
faço o espaço necessariamente mais estreito
entre o peito do amante e a pretendida.

Flora Figueiredo
In Estações
arte Ron Hicks

Cinzentos




Tem uma tristeza escondida lá para trás.
Tantas luas faz, que já nem sei
qual a avenida em que foi concebida,
o quarteirão em que criou a raiz.
Aí está ela no seu mesmo terno,
chegando sempre a cada novo Inverno,
severa e cinza na risca de giz.

Flora Figueiredo
In Estações

domingo, 10 de junho de 2018

Nem Tudo



Nem tudo é proibido:
a rosa é dádiva
e há pétalas no caminho salpicadas

O sol é dádiva
o mar, o vento, o fruto
o pouso do guerreiro e as suas asas
abertas na ilusão do viadante

A sombra, o sonho, o olhar de súplica
a voz inesperada, o amor incerto
o gesto sôfrego, o adeus, o abraço,o afago
...nem tudo é proibido

A vida passa na folha que cai
no momento perdido
e na dúvida que fere vezes mais
que este medo de espinhos de que fugimos

Mauro Salles
In O Gesto