quinta-feira, 31 de outubro de 2019

SIMPLESMENTE



O encanto não tem limites.
Não precisa de espaço.
Sob pálpebras ou pedra
dorme sem sonho.
Como na margarida,
ele explode
na poeira de um miolo amarelinho.

Elizabeth Gontijo

PRIMAVERA


Folículos e brotos
se adensam.
Lateja, no barro, a semente
e o verbo no coração.
Pulsações.
Entre pólen e favo
a abelha trama um enredo.
Entre a flor e o fruto
o homem urde a história.
Cumpra-se, mágico, o tempo.

Elizabeth Gontijo
arte Dorina Costras

terça-feira, 29 de outubro de 2019

MAUS TEMPOS


Agora nos calamos
E já não mais cantamos.
Nosso passo é pesado.
É a noite, o seu tempo é chegado.

Dá-me a tua mão,
Talvez que seja longo este caminho ainda.
E a neve cai, a neve!
O inverno em terra estranha nunca finda.

Onde está o tempo
em que uma luz, um lar por nós ardia?
Dá-me a tua mão.
Talvez seja longo este caminho ainda.

Hermann Hesse 
Tradução de Jorge de Sena
de Poesia do Século XX, Fora do Texto Editora, Coimbra, 1994.
arte Burliuk David


domingo, 27 de outubro de 2019

O JARDIM E A NOITE


Atravessei o jardim solitário e sem lua,
Correndo ao vento pelos caminhos fora,
Para tentar como outrora
Unir a minha alma à tua,
Ó grande noite solitária e sonhadora.

Entre os canteiros cercados de buxo
Sorri à sombra tremendo de medo.
De joelhos na terra abri o repuxo,
E os meus gestos foram gestos de bruxedo.
Foram os gestos dessa encantação,
Que devia acordar do seu inquieto sono
A terra negra dos canteiros
E os meus sonhos sepultados
Vivos e inteiros.

Mas sob o peso dos narcisos floridos
Calou-se a terra,
E sob o peso dos frutos ressequidos
Do presente
Calaram-se os meus sonhos perdidos.

Entre os canteiros cercados de buxo,
Enquanto subia e caía a água do repuxo,
Murmurei as palavras em que outrora
Para mim sempre existia
O gesto dum impulso.
Palavras que eu despi da sua literatura,
Para lhes dar a sua forma primitiva e pura,
De fórmulas de magia.

Docemente a sonhar entre a folhagem
A noite solitária e pura
Continuou distante e inatingível
Sem me deixar penetrar no seu segredo.
E eu senti quebrar-se, cair desfeita,
A minha ânsia carregada de impossível,
Contra a sua harmonia perfeita.

Tomei nas minhas mãos a sombra escura
E embalei o silêncio nos meus ombros.
Tudo em minha volta estava vivo
Mas nada pôde acordar dos seus escombros
O meu grande êxtase perdido.

Só o vento passou pesado e quente
E à sua volta todo o jardim cantou
E a água do tanque tremendo
Se maravilhou
Em círculos, longamente.

– Sophia de Mello Breyner Andresen,
 do livro “Coral e outros poemas”
arte Nydia Lozano


domingo, 20 de outubro de 2019

INCONTROLÁVEL



Tem dia de manga-rosa
e dia de limão azedo;
tem tempo de gardênia
e tempo de galho seco;
tem hora de salmo
e hora de maledicência;
tem palavra de falar
tem palavra de ficar quieta.
É tudo poesia na palma da mão.

Flora Figueiredo
Limão Rosa
arte Dorina Costras

domingo, 13 de outubro de 2019

CHUVA



A chuva fina molha a paisagem lá fora.
O dia está cinzento e longo...
 Um longo dia!Tem-se a vaga impressão de que o dia demora...
E a chuva fina continua, fina e fria,
Continua a cair pela tarde, lá fora.

Da saleta fechada em que estamos os dois,
Vê-se, pela vidraça, a paisagem cinzenta:
A chuva fina continua, fina e lenta..
E nós dois em silêncio, um silêncio que aumenta
se um de nós vai falar e recua depois.

Dentro de nós existe uma tarde mais fria...

Ah! Para que falar?
 Como é suave, branda,O tormento de adivinhar — quem o faria? —
As palavras que estão dentro de nós chorando...

Somos como os rosais que, sob a chuva fria,
Estão lá fora no jardim se desfolhando.

Chove dentro de nós... Chove melancolia...


Ribeiro Couto
de O jardim das confidências, 1921