sábado, 30 de setembro de 2017



O inverno, teimoso, 
invadindo a primavera
traz garoa fria...

Delores Pires (3.10.2010)



 Pérolas de chuva
dançando serenas no ar
tombam sobre a terra.

Delores Pires
In O livro dos Haicais

Enquanto se Movem a Lua




À noite não dormem
as cerejeiras em flor.
Seu breve tempo de vida
não lhes permite sono.
Ausentes os beija-flores que as cortejam de dia
distantes os besouros e abelhas
agora recolhidos em seus ninhos,
somente as pétalas velam no silêncio
avançando rumo ao pleno esplendor
que marcará o início do seu fim.

Marina Colasanti
In Passageira em trânsito

O Divino





Nobre seja o homem,
Caridoso e bom!
Pois isso apenas
É que o distingue
De todos os seres
Que conhecemos.

Glória aos incógnitos
Mais altos seres
Que pressentimos!
Que o homem se lhes iguale!
Seu exemplo nos ensine
A crer naqueles!

Pois insensível
É a natureza:
O sol 'spalha luz
Sobre maus e bons,
E o criminoso
Brilham como ao santo
A lua e as 'strelas .

Vento e torrentes,
Trovão e saraiva
Rugem seu caminho
E agarram,
Velozes passando,
Um após outro.

Tal a sorte às cegas
Lança mãos à turba
E agarra os cabelos
Do menino inocente
Ou a fronte calva
Do velho culpado.

Poe eternas leis,
Grandes e de bronze ,
Temos todos nós
De fechar os círculos
Da nossa existência.

Mas somente o homem
Pode o impossível:
Só ele distingue,
Escolhe e julga;
E pode ao instante
Dar duração.

Só ele é que pode
Premiar o bom,
Castigar o mau,
Curar e salvar,
Unir com proveito
Tudo o que erra e divaga.

E nós veneramos
Os imortais
Como se homens fossem,
Em grande fizessem
O que em pequeno o melhor de nós
Faz ou deseja.

Que o homem nobre
Seja caridoso e bom!
Incansável crie
O útil, o justo,
E nos seja exemplo
Dos Seres pressentidos.


Johann Wolfgang Von Goethe
In Poesias Escolhidas

XXX




Para Helena
 
Quando fores  bem velha, à noite, à luz da vela,
sentada ao pé do fogo e os fios entrelaçando,
dirás, maravilhada, os meus versos cantando:
"Ronsard  me celebrou no tempo em que fui bela"
 
Se alguma serviçal, então, tiveres, ela,
mesmo entredormida, no labor cochilando, 
há de, ao som, acordar e, Ronsard ecoando,
o teu nome imortal bendirá dentro dela. 
 
Eu, fantasma incorpóreo na terra hei de ser,
sob a sombra de um mirto, em repouso, a jazer,
Tu serás, ao fogão , uma velha encolhida,
 
lamentando a paixão que o desdém tornou vã.
Se me crês, é viver sem esperar o amanhã.
Colhe hoje, e agora, as rosas desta vida.
 
Pierre de Ronsard - (1524-1585)  
In As Linguagens das rosas
tela Kurt Anderson

O Motivo da Rosa




A rosa, bela infanta das sete saias
e cuja estirpe não lhe rouba, entanto,
o ar de menina, o recatado encanto
da mais humilde de suas aias,
a rosa, essa presença feminina,
que é toda feita de perfume e alma,
que tanto excita como tanto acalma.
a rosa... é como estar junto da gente
um corpo cuja posse se demora
- brutal que o tenhas nesta mesma hora,
em sua virgindade inexperiente 
Rosa, ó fiel promessa de ventura
em flor...rosa paciente, ardente,pura!

Mario Quintana
In Melhores Poemas

Primavera





A primavera é a estação dos risos  etc.etc . Mal  treme
a brisa e mal palpita o lago.Mas de que brisa me hablas,
Casemiro? É vento, é chuva - é isto!
Ah, pelo que vocês dizem e pelo que se vê, a primavera
é apenas uma licença poética...



Mario Quintana
In Porta Giratória

Canção do Fundo do Tempo




Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Creio que jamais te vi...
Linda corça enrodilhada
À espera do sacrifício,
Parece que te vejo agora
Só agora!
Levemente desenhada
Nos móveis biombos do tempo
Feitos de água e de gaze...
Ah! se eu pudesse jogar-me
Às águas que já passaram,
Decerto que morreria
Ou ficaria mais louco
Do que os anjos rebelados:
Ninguém quebra a lei do tempo,
Basta os cabelos de mortos
Que se enroscam em meus dedos,
Basta as vozes tão amadas
Que me chamam de tão longe...
Ah, decerto que eu morreria,
Se é que já não morri!
Longe andava o meu olhar.
Longe andava...
Por trás dos muros do tempo,
As pessoas que eu amava
Amaram-se entre si.

Mario Quintana
In Apontamentos de História Sobrenatural 
tela Felix Mas

De Amor nada Mais Resta que um Outubro




De amor nada mais resta que um Outubro 
e quanto mais amada mais desisto: 
quanto mais tu me despes mais me cubro 
e quanto mais me escondo mais me avisto. 

E sei que mais te enleio e te deslumbro 
porque se mais me ofusco mais existo. 
Por dentro me ilumino, sol oculto, 
por fora te ajoelho, corpo místico. 

Não me acordes. Estou morta na quermesse 
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie 
nem teus zelos amantes a demovem. 

Mas quanto mais em nuvem me desfaço 
mais de terra e de fogo é o abraço 
com que na carne queres reter-me jovem. 

Natália Correia, in “Poesia Completa” 
arte  Ichiro Tsuruta   

Noite de chuva





Chuva...Que gotas grossas!... Vem ouvir:
Uma...duas...mais outra que desceu...
É Viviana, é Melusina, a rir,
São rosas brancas dum rosal do Céu...

Os lilases deixaram-se dormir...
Nem um frémito...a terra emudeceu...
Amor! Vem ver estrelas a cair:
Uma...duas...mais outra que desceu...

Fala baixo, juntinho ao meu ouvido,
Que essa fala de amor seja um gemido,
Um murmúrio,um soluço, um ai desfeito...

Ah! deixa à noite o seu encanto triste!
E a mim... o teu amor que mal existe,
Chuva a cair na noite do meu peito!   

Florbela Espanca
In Sonetos
foto  John-Morgan

Folhas de Rosa





Todas as prendas que me deste, um dia,
Guardei-as, meu encanto, quase a medo,
E quando a noite espreita o pôr-do-sol,
Eu vou falar com elas em segredo... 

E falo-lhes d'amores e de ilusões,
Choro e rio com elas, mansamente...
Pouco a pouco o perfume de outrora
Flutua em volta delas, docemente...

Pelo copinho de cristal prata
Bebo uma saudade estranha e vaga,
Uma saudade imensa e infinita
Que, triste, me deslumbra e  m'embriaga 

O espelho de prata cinzelada,
A doce oferta que eu amava tanto,
Que refletia outrora tantos risos,
E agora reflete apenas pranto,

E o calor de pedras preciosas,
De lágrimas e estrelas constelado,
Resumem em seus brilhos o que tenho
De vago e de feliz no meu passado...

Mas de todas as prendas, a mais rara,
Aquela que mais fala à fantasia,
São as folhas daquela rosa branca
Que a meus pés desfolhaste, aquele dia...

Florbela Espanca
In Trocando Olhares 
tela  Igor Levashov

Primavera




É Primavera agora, meu Amor!
O campo despe a veste de estamenha;
Não há árvore nenhuma que não tenha
O coração aberto, todo em flor!

Ah! Deixa-te vogar, calmo, ao sabor
Da vida... não há bem que nos não venha
Dum mal que o nosso orgulho em vão desdenha!
Não há bem que não possa ser melhor!

Também despi meu triste burel pardo,
E agora cheiro a rosmaninho e a nardo
E ando agora tonta, à tua espera...

Pus rosas cor-de-rosa em meus cabelos...
Parecem um rosal! Vem desprendê-los!
Meu Amor, meu Amor, é Primavera!...

Florbela Espanca
In Reliquae

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Jamais




Descobre que só porque alguém não o
 ama do jeito que você quer que ame, não
significa que esse alguém não o ama com
tudo o que pode, pois existem pessoas que
nos amam, mas simplesmente não
sabem como demonstrar ou viver isso. 
                              W.Shakespeare


És terra, céu e mar, és chuva e vento.
És sorriso, és lamento, és meu reclamo.
És dúvida e certeza, és pensamento.
És crença em que creio e que reclamo.

És o instante das horas, és momento.
És a paz que desejo e que conclamo.
És cosmo, és o etéreo firmamento.
És o anverso dos versos que declamo.

És o estreme do branco, o mais perfeito,
és o senso do amor sem preconceito.
És o silêncio, és o som da voz que chamo.

És a tristeza presa no meu peito
porque se te amo tanto desse jeito,
jamais irás me amar como eu te amo!

Ronaldo Cunha Lima
In Sal no Rosto
tela Willem Haenraets

Flor de Esteva




Venho encontrá-la já quase a morrer,
A minha pobre "esteva do montado",
Que, antes, eu vira alegre, florescer,
Junto à "linda" riscado pelo arado!
 
Levei ao Casalinho de Bel Vêr
A rainha  do grande descampado;
Mas ela não quis mais ali viver,
Sem "maios" e "roselas" ao seu lado
 
Falta-lhe o ardor do sol alentejano,
Aquela sombra amiga dos sombreiros...
Já não teve as "geadas" deste ano.
 
E morre de saudade e nostalgia,
Sem ter o barro e a cal por companheiros ,
Queimada pelo ar da maresia.
 
Outono de 1935
 
Maria de Santa Isabel
In Flor de Esteva
foto  de Engº Afonso Calheiros

Obs. As flores da esteva parecem de papel. O seu pólen é procurado por muitos insectos.

Conselho



No meu passado há sol: há claridade,
Que à sombra do futuro resplandece,
Quanto mais o caminho me escurece,
No presente, que é feito de saudade.
 
Encontro ainda tanta saudade
Ao relembrar! As vezes, me acontece
Sentir o coração, que me envelhece,
A reflorir de novo em mocidade!
 
Sempre é doce o passado:
- Aprender a envelhecer tranquilamente,
Colhe da vida o que ela quer te dar...
 
Envelhecer assim não custa nada:
É como quem procura, no poente,
A estrela que brilhou na madrugada...
 
Maria de Santa Isabel
In Flor de Esteva
arte Daniel F.Gerhartz

Menos a mim





Conheço a aurora com seu desatino
Conheço o amanhecer com o seu tesouro
Conheço as andorinhas sem destino
Conheço rios sem desaguadouros
Conheço o medo do princípio ao fim


Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim

Conheço o ódio e seus argumentos
Conheço o mar e suas ventanias
Conheço a esperança e seus tormentos
Conheço o inferno e suas alegrias
Conheço a perda do princípio ao fim
Conheço tudo, conheço tudo
Menos a mim

Mas depois que chegaste de algum céu
Com teu corpo de sonho e margarida
Pra afinal revelar-me quem sou eu
Posso afirmar enfim
Que não conheço nada desta vida
Que não conheço nada, nada, nada
Nem mesmo a mim 

Ferreira Gullar 
In Toda Poesia
arte Diane Rousseau

quinta-feira, 28 de setembro de 2017



Erguer a cabeça acima do rebanho
é um risco
que alguns insolentes correm.

Mais fácil e costumeiro
seria olhar para as gramíneas
como a habitudinária manada.

Mas alguns erguem a cabeça
olham em torno 
e percebem de onde vem o lobo.

O rebanho depende de um olhar.

Affonso Romano de Sant'Anna
In Sísifo desce a montanha

quarta-feira, 27 de setembro de 2017




À morte das Cores


Azul é transparência, Amarelo é Sol-posto,
O Branco é quietação, o Gris é ocaso... outono...
O Lilás é um jardim de violetas, em Agosto,
Sonhando os rouxinóis, rezando-me o abandono...

O Verde é oceano ao luar, rastros de caravelas,
O Fosco é o meu torpor, etérea sombra, cisma...
O áureo é crispação de uma Tarde sem velas...
Que vão ritmando, em mágoa, a hora que se abisma.

O Rubro é Salomé, feita a rubis, no poente,
Enlaçando-lhe o corpo um Ângelus de opalas...
Ó celeste audição, colorindo o ocidente!

O último vitral as cores intercala,
Na água-morta a acender a ametista dormente,
Nos diques, em que a nau da morte fez escala...

Ernani Rosas
In Ritus da Cruz


"Vozes veladas, veludosas vozes,
 Volúpias dos violões,vozes veladas,
 Vagam nos velhos vórtices velozes
 dos ventos,vivos,vãs,vulcanizadas"
 Cruz e Souza 

Seduz,embriaga o pensamento,anula
toda memória para além da vida,
é um vinho sedutor,que me estimula!
o coração de fibra envelhecida...

Quando tudo é silêncio e a alma da Lua,
Quando tudo se exulsa e os astros descem
para melhor ouvir o que tressua
nos bordões pelo ar, que se arrefecem...

É quando já se vão... fica a lembrança
da asa fluida do Longe e o último verso
de porta em rua, p'ra desesperança...

Guardo-o comigo, no meu coração,
fica a adejar no ouvido o último terço...
guardo a saudade da última canção!

Ernani Rosas
In História do Gosto e Outros Poemas 
arte Daniel F.Gerhartz

Obs...exulsa talvez um neologismo do poeta a partir de exul,
exilar,exular ....afastar-se,apartar-se.