domingo, 27 de novembro de 2022

MEMÓRIA DA CHUVA



    












     Talvez o Espírito de Deus pairasse
sobre a face das águas,
mas só o que ele,
                         o menino insone,
viu
foi o escuro e as gotas que caíam 
num murmúrio.
                           Foi só
o que viu
e ouviu,
além da sirene do Cine Glória
em seu alarme
e a avó falando baixinho à Virgem Santíssima,
e os Lobisomens no vento,
e na imaginação o açude 
solto nas ruas,
na praça,
subindo até tanger o sino da igreja
do Divino.

Talvez o Espírito de Deus pairasse
sobre as nuvens,
mas não estava lá quando veio a manhã
e as nuvens se esgarçaram 
                                       e o azul foi alagando
o céu
          e o açude respirava
serenamente
entre as margens pantanosas e a muralha de pedra.

E todos
estavam felizes.
                          Todos.
                                     Menos um:
                                                        aquele,
o menino insone,
que perdera seu reino submerso.

Ruy Espinheira Filho
de Memória da Chuva
foto Schutterstock

quarta-feira, 23 de novembro de 2022

NESTE TEMPO

 

 Feliz ano...Hoje que tens 
minha terra a teus dois lados, és feliz, irmão.
Eu sou errante filho do que amo.
Responde-me, pensa que estou contigo
a perguntar-te, pensa que sou o vento de janeiro,
vento Puelche,* vento velho das montanhas
que quando abres a porta te visita
sem entrar, ventilando suas rápidas perguntas.
Dize-me, entraste por um campo de trigo ou de 
         cevada,
estão dourados? Fala-me de um dia de cerejas.
Longe do Chile penso num dia redondo,
cor de amora, transparente, de açúcar em cachos,
e de grãos espessos e azuis que gotejam
em minha boca as suas taças carregadas de delícia.
Diz-me, mordeste hoje a anca pura
de um pêssego, e enchendo-te de imortal
          ambrosia,
até que também foste fonte da terra,
fruto e fruto entregues ao esplendor do mundo? 

 

                                        Pablo Neruda 
                                       de Canto Geral 

                      *Vento Puelche; vento leste, que vem da cordilheira para o mar.
   


NOTURNO

 


Chega o circuito do deserto,
à alta noite aérea do pampa,
ao círculo noturno, espaço e astro,
onde a zona do Tamarugal recolhe
todo o silêncio perdido no tempo.

Mil anos de silêncio em uma taça
de azul calcário, de distância e lua,
lavram a geografia nua da noite.

Eu te amo, pura terra, como tantas
coisas amei contraditórias:
a flor, a rua, a abundância, o rito.

Eu te amo, irmã pura do oceano.
Para mim foi difícil esta escola vazia
em que não estava o homem, nem o muro, nem a planta
para apoiar-me em algo.

Estava só.
Era planura e solidão a vida.

Era este o peito varonil do mundo.

E amei o sistema de tua forma reta,

a extensa precisão de teu vazio.


Pablo Neruda
de Canto Geral
arte Bigthu Mbnail


quinta-feira, 17 de novembro de 2022

XIV

 


 Quando  flores e nuvens,
mosaicos de silêncio repentino,
       frescos vales e montes,
onde a erva cresce e o gado se apascenta
        e o rio a sua prata.

oferece, gentil, à móvel brisa
        de sede sossegada,
quando tudo o que tenho for lembrança,
        que será do que vejo,
se a mais fiel memória transfigura

        o que lembra? No entanto,
o mesmo milho crescerá no campo,
        repetindo o ritual
de há milênios; as mesmas - outras águas 
        espelharão no dorso

de vidro movediço os mesmos ramos.
        Estas serão as árvores,
as verdadeiras, íntegras, antigas,
        que só com o pensamento
eu não alcançarei em plenitude

        de silêncio e de vida.
Pois uma coisa é ter, outra, lembrar.
        Uma coisa é viver,
viver em bruto, o sol dando na pele,
         o vento levantando

cortinas de esperança e esquecimento;
         outra coisa é criar.
Criar quase prescinde do que existe.
         o que existe é somente
um rascunho ou um ponto de partida.

        Enquanto posso, vivo
a fértil realidade destes longes.
        Laboriosa construo
com este mel, para os futuros sonhos,
        aprazível morada.

Marly de Oliveira
de Obra Poética Reunida


XIII

      

        O Sol é bom e ameno,
Só pelo frio se sabe que é inverno,
       Os dias continuam
       como os da primavera,
com crepúsculos lentos e arroxeados.

         Ser feliz é tão fácil
que os pensamentos brotam delicados
         como potes saídos
          do torno de um oleiro.
E pousam como jarras sobre a mesa.

           São do  cristal mais leve,
e soariam como o fresco riacho,
            como o canto sem voz,
             se, como o vento, dessem
de encontro à livre espiga e à dura pedra.

             Tudo tão verdadeiro!
   Para que cogitar da natureza
            do que à
s vezes me atinge,
             quando penso no dia 
em que só for memória o que ora tenho?

              Marly de Oliveira        
        de Obra Poética Reunida
             arte Ming Feng

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