quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O SILÊNCIO DAS PLANTAS





A relação unilateral entre mim e vocês
até que não vai tão mal.

Sei o que é folha, caule, pétala, pinha e espiga
e o que lhes acontece em abril e em dezembro.

Embora minha curiosidade não seja recíproca,
me debruço só para ver algumas de vocês
e para ver outras ergo a cabeça.

Dou-lhes nomes:
bordo, bardana, hepática,
urze, zimbro, visco, miosótis,
mas vocês não me dão nenhum.

Partilhamos a mesma viagem.
Durante uma viagem conjunta é costume conversar, afinal,
trocar impressões, nem que seja sobre o tempo
ou sobre as estações que passam no trajeto.

Não faltariam assuntos, pois temos muito em comum.
Essa mesma estrela nos mantém sob seu alcance.
Projetamos sombras na base das mesmas leis.
Procuramos saber algo, cada qual do seu jeito,
e somos parecidos também no que não sabemos.

Perguntem, e eu lhes explicarei como puder:
o que é isso de ver com os olhos,
para que bate meu coração
e por que meu corpo não tem raízes.

Mas como responder a perguntas não feitas,
se além disso se é alguém 
que para vocês é tão ninguém.

Epífetas, arvoredos, prados, juncos -
tudo que lhes digo é monólogo
e não são vocês que escutam.

Uma conversa entre nós é imperiosa e impossível.
Urgente na vida apressada
e adiada para nunca.

Wislawa Szymborska
de Um amor feliz
Tradução Regina Przybycien 

terça-feira, 25 de outubro de 2022

SAZONAIS ETERNIDADES

 


Abres-me, janela,
e antigas memórias
me salpicam o rosto,
chuvas ainda por desabar.

Escancaradas portadas,
devolvem-me o corpo,
esse mesmo corpo
que, para febre e desejo,
em outro corpo acendi.

Abres-me, saudade
e o tempo se descalça
pra atravessar
incandescentes brasas.

E quando,
de novo, me encerras
volto a dormir
como dormem os rios
em véspera de serem água.

A saudade
é o que ficou
do que nunca fomos.

Mia Couto
de Poemas Escolhidos
Arte Trish Biddle


A DEMORA


O amor nos condena:
demoras
mesmo quando chegas antes,
Porque não é no tempo que eu  te espero.

Espero-te antes de haver vida
e és tu quem faz nascer os dias. 

Quando chegas 
já não sou senão saudade
e as flores
tombam-me dos braços 
para dar cor ao chão em que te ergues.

Perdido o lugar
em que te aguardo,
só me resta água no lábio 
para aplacar a tua sede.

Envelhecia a palavra,
tomo a lua por minha boca
e a noite, já sem voz,
se vai despindo em ti.

O teu vestido tomba
e é uma nuvem.
O teu corpo se deita no meu,
um rio se vai aguando até ser mar.

Mia Couto
de Poemas escolhidos
Arte Dorina Costras



 

REGÊNCIA

 


Rabisco aqui
de próprio punho
o rascunho
de tuas horas que são minhas.
Entreguei à lua
a regência de minhas horas que são tuas.
Pediu-se ao vento
para enganar o tempo com seus assobios
e aos trinados vadios das aves errantes,
que convocassem os passantes 
para escutar a nova sinfonia.
Sobre a terra quente e latejante,
despejei bemóis e sustenidos
para germinar no solo a melodia
que rege a vida com a fúria dos sentidos.

Flora Figueiredo
de Limão Rosa
Arte Irina Kotova