sábado, 30 de dezembro de 2017



Tardes de verão.
A cigarra na fanfarra
com ar brincalhão.

Delores Pires
de Tapete de Folhas

31 de dezembro




Diremos outra vez as mesmas palavras
e elas serão novas,
                             embora
tenha havido o que houve
e saibamos o que sabemos.

Porque assim é. E assim será, 
                                             enquanto
aqui estivermos.
                              Enquanto
janeiro acender em nós 
a sua luz de além dos calendários
mortos.

Rui Espinheira Filho

sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

Poema tipo fichário de informações




Sou um pouco de tudo,
um pouco de nada.
Tenho asas,guelras,
terras e constelações.

Se já amei?
Mil vezes amei
Mil vezes desamei.

Sei que ando pelas ruas
como todos andam pelas ruas
Sei que tenho náuseas e espanto.
Sei que tenho óleo
boiando sujo no lago da memória,
degráus cheios de pássaros mortos,
diálogos barrados
no limiar da hora do encontro,
cloacas envernizadas do nada mais que o social,

Oh! como dar mãos
a quem não tem mãos de dar,
não me encostem à parede
todas as vezes
em que venho para ficar em silêncio
em silêncio
mesmo que isto seja difícil,

deixem-me calado na dor e no amor,
deixem a alvorada levantar
com meus olhos pregados à janela,
deixem a solidão fundir-se
como chumbo se funde
ao fogo da vida,

deixem em paz minha desordem,
meu canto rouco,
meu viver interior,
meu delírio,meu submundo,
as águas de minha incerteza constante,

deixem em paz a ferrugem de meus planos abandonados,
o quadro negro de meu existir traçado a giz,
meu nascimento nos lugares mais doidos,

não queiram que eu chegue a um ponto determinado
(detesto pontos mesmo os mais longínquos),
não me ensinem códigos,
não me ponham sininhos no pescoço:

EU QUERO TER A CERTEZA DE SER LIVRE

Lindolf Bell
In Incorporação
arte  desconheço autoria


Despede-se o Velho
No sorriso da Criança
esperanças novas.
 
Delores Pires
arte  Shaking Hands 

Resignação



No silêncio das noites perfumosas,
Quando a vaga chorando beija a praia,
Aos trêmulos rútilos das estrelas,
Inclino a triste fronte que desmaia.
E vejo o perpassar das sombras castas
Dos delírios da leda mocidade;
Comprimo o coração despedaçado
Pela garra cruenta da saudade.
Como é doce a lembrança desse tempo
Em que o chão da existência era de flores,
Quando entoava o múrmur das esferas
A copla tentadora dos amores!
Eu voava feliz nos ínvios serros
Empós das borboletas matizadas...
Era tão pura a abóbada do elísio
Pendida sobre as veigas rociadas!...
Hoje escalda-me os lábios riso insano,
É febre o brilho ardente de meus olhos:
Minha voz só retumba em ai plangente,
Só juncam minha senda agros abrolhos.
Mas que importa esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
Se nas asas gentis da poesia
Eleva-me a outros mundos mais formosos?!...
Do céu azul, da flor, da névoa errante,
De fantásticos seres, de perfumes,
Criou-me regiões cheias de encanto,
Que a luz doura de suaves lumes!
No silêncio das noites perfumosas
Quando a vaga chorando beija a praia,
Ela ensina-me a orar, tímida e crente,
Aquece-me a esperança que desmaia.
Oh! Bendita esta dor que me acabrunha,
Que separa-me dos cânticos ruidosos,
De longe vejo as turbas que deliram,
E perdem-se em desvios tortuosos!...

 Narcisa Amália
 em "Nebulosas". 1872.
arte Giuliano Boscaini

Ano Novo




Meia-noite. Fim 
de um ano, início 
de outro. Olho o céu: 
nenhum indício. 

Olho o céu: 
o abismo vence o 
olhar. O mesmo 
espantoso silêncio 
da Via-Láctea feito 
um ectoplasma 
sobre a minha cabeça 
nada ali indica 
que um ano novo começa. 

E não começa 
nem no céu nem no chão 
do planeta: 
começa no coração. 

Começa como a esperança 
de vida melhor 
que entre os astros 
não se escuta 
nem se vê 
nem pode haver: 
que isso é coisa de homem 
esse bicho 
estelar 
que sonha 
(e luta). 

    Ferreira Gullar  
               arte An He             

O verão



A Primavera veio
e se foi, mas deixou tremendo em cada seio
um rebento de amor. O Verão se acentua, 
e, de manhã, bem cedo,
vêm dos silêncios amplos e sombrios
dos versudos moitais,
vêm do arvoredo,
murmúrios
macios
de cicios...
Há um mistério, um segredo
que sai dos íntimos refolhos
da alma dos animais,
das plantas, do minério,
– amoroso mistério
que as mulheres relatam pelos olhos.

Parece mais redonda
a curva da montanha, a curva da onda...
Por onde quer que a luz dos olhos entre
estranha tumescência encontra em cada ventre;
o claro e escampo céu, sobre as coisas aberto 
da terra está mais perto
e está mais lindo,
como que pesado, como que caindo,
das entranhas contendo nos profundos
desvãos a gravidez de novos mundos. 

Verão!
Que maravilha!
– a luz fervilha
em tudo:
nota-se do silêncio no veludo
uma palpitação 
de existência no embrião;
partículas de Sol a água envolve, rolando,
partículas de Sol tremem, de quando em quando,
na fronderia, no ar;
partículas de Sol pululam pela estrada 
que trilho, iluminada...
Creio que a luz esteja a desovar,
sinto-a vivendo, sinto-a vibrando
na minha pele, em cada membro, a cada
instante, e vago contaminada,
pelo gérmens vitais da procriação solar. 

O dia lembra uma exaustão de amor...
Verão! Que acídia, que langor!...
Quem me dera também me desdobrar assim
como esse azul etéreo
que paira sobre mim
num lírico elastério!...
Por ti, Verão, todo meu corpo sente
ânsia de se expandir indefinidamente,
ânsia de se esticar, de se esticar
como as montanhas, como o mar,
em curvas lentas, no semiústo ambiente;
ânsia de distender
uma serpente
que carrego enroscada no meu ser. 

Quero amor, quero ardência! A ti me exponho.
Verão, sou toda fecundidade!
– O calor me penetra, o Sol me invade
o senso,
e tudo em torno a mim se torna mais extenso,
tudo em que os olhos ponho:
o céu, o oceano, a mata...
E enquanto em gestação a Terra se dilata,
Dilata-se minha alma à gestação do Sonho.

Gilka Machado
Publicado no livro Mulher Nua (1922).
arte Diane Leonard

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Por toda a parte



Interrogaste a vida: interrogaste o arcano,
Misterioso sentir do coração humano;
A mesta palidez serena do luar;
O murmúrio plangente e soturno do mar;
O réptil, que rasteja; o pássaro, que voa;
A fera, cujo berro as solidões atroa;
A desenfreada fúria insana do tufão;
A planta a se estorcer numa atroz convulsão.
Interrogaste, enfim, tudo o que existe, tudo:
O que chora, o que vibra, o que é imoto, o que é mudo.
Do astro eterno baixaste à transitória flor.
Que encontraste, afinal?
– A dor! a dor! a dor!

 Júlia Cortines
arte Fuller Graves

Dor Eterna




O tempo – dizem – apaga
O prazer e o sofrimento
Sobre eles rolando a vaga
Sombria do esquecimento.

E transforma encantadores
Sítios, que tu, Abril, vestes
De uma gaze de esplendores,
Em sítios feios e agrestes.

E faz germinar nas águas,
Que bebe a gandra bravia,
O lírio, como das mágoas
Brota a flor da alegria.

E, no entretanto, contemplo,
Extática e dolorosa,
Entre os escombros de um templo
Desmoronado, caída

A ara ebúrnea, de que há tanto
Despenhou-se a idolatrada
Imagem, que vejo, em pranto,
De lodo vil salpicada...

Por isso, pungida à aguda
Pena, que o olvido não calma,
Diz à revolta, sanhuda
Onda do tempo a minha alma:

“– Rola túmida ou desfeita.
Que importa? – Como os granitos,
Conservo, pedaços feita,
Os caracteres inscritos.”

Júlia Cortines 

O Tempo




Passas, leve e sutil, sem trégua e sem cansaço.
 Passas, e de teus pés vem rolar sob a planta
Tudo o que ri e chora e se lastima e canta.
 Uma esteira de pó fica após o teu passo...

 Quanta angústia desfeita em lágrimas, 
e quanta Ilusão, que embalou um’hora o teu regaço,
 Não pensaram, ness’hora inolvidada e santa,
 Seguir contigo a estrada infinita do espaço!

 E ao término fatal levaste-l’as, no entanto. 
O monumento eril rui à tua passagem,
 E transmuda-se em sombra a mais brilhante imagem.

 Tarde ou cedo destróis tudo o que existe: o pranto
 Secas, sustas o riso, e emudeces o grito
 No lento caminhar através do infinito...

Julia Cortines
arte Fuller Graves

Tarde de Inverno



( a Carlota Cortines) 

 Sob o curvo cristal da imensidade
 De um céu de transparência etérea e fria,
 Em que do posto sol a claridade,
 Azul e melancólica, radia, 

Vemos o bosque, o rio, a amenidade
 Das sombras, a ondulada pradaria,
 Como um painel de estranha suavidade 
E encantadora e rústica poesia.

Olha como o formoso fruto loiro
 Salpica de pequenos pontos de oiro
 Aquela verdejante laranjeira!

 E além, alem, do céu no alaranjado
 Fundo se esbate e avulta o recortado 
E sombrio perfil da cordilheira...

Julia Cortines
arte Van Gogh

quarta-feira, 27 de dezembro de 2017

Amor de Violeta



As violetas são os serenos pensamentos que o mistério
 e a solidão despertam na alma
 verdejante da esplêndida primavera.
                                   Luís Guimarães Júnior 

Esquiva aos lábios lúbricos 
Da louca borboleta, 
Na campina, olente, formosíssima,
 Vivia a violeta. 

Mas uma virgem cândida, um dia
 Ante ela passa, 
E vai colher mais longe uma faceira hortênsia
 Que à loira trança entrelaça.

 “ai! – geme a flor ignota:
 se pela cor brilhante
 que tinge a linda rosa, a tinta melancólica
 trocasse um só instante; 

como eu sentira, ébria
 de amor, de mágoa, enleio,
 do coração virgínio as pulsações precípites, 
unidas ao casto seio!”

 Doideja a criança pálida 
Na relva perfumosa,
 E a meiga violeta ao pé mimoso e célere
 Esmaga caprichosa.

 Curvando a fronte exânime
 Soluça a flor singela: 
“Ah! como sou feliz!
 Perfumo a planta ebúrnea da minha virgem bela!...”

Narcisa Amália
In Nebulosa

Sandness




"Still visit thus my nights, for you reserved,
And mount my soaring soul thougts like yours."
                                   (James Thomson)

XX
Meu anjo inspirador não tem nas faces 
As tintas coralíneas da manhã,;
Nem tem nos lábios as canções vivaces
Da cabocla pagã!

Não lhe pesa na fronte deslumbrante 
Coroa de esplendor e maravilhas, 
Nem rouba ao nevoeiro flutuante 
As nítidas mantilhas.

Meu anjo inspirador é frio e triste 
Como o sol que enrubesce o céu polar! 
Trai-lhe o semblante pálido — do antiste 
O acerbo meditar!

Traz na cabeça estema de saudades,
Tem no lânguido olhar a morbideza;
Veste a clâmide eril das tempestades,
E chama-se — Tristeza!...


Narcisa Amália
In Nebulosas
arte Dorina Costras

Esperança




Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano
Vive uma louca chamada Esperança
E ela pensa que quando todas as sirenas
Todas as buzinas
Todos os reco-recos tocarem
- Ó delicioso vôo!
Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,
Outra vez criança...
E em torno dela indagará o povo:
- Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?
E ela lhes dirá
(É preciso dizer-lhes tudo de novo!)
Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam:
- O meu nome é ES-PE-RANÇA...

Mario Quintana
In Nova Antologia Poética
arte Amanda Cass

Reinauguração



Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmitificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza, a 
exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os
descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.

Carlos Drummond de Andrade
In Farewell

O Último dia do ano





O último dia do ano
não é o último dia do tempo.
Outros dias virão
e novas coxas e ventre te comunicarão o calor da vida.
Beijarás bocas, rasgarás papéis,
farás viagens e tantas celebrações
de aniversário, formatura,promoção,glória,doce morte com
[sinfonia e coral,
que o tempo ficará repleto e não ouvirás o clamor,
os irreparáveis uivos
do lobo, na solidão.

O último dia do tempo
não é o último dia de tudo.
Fica sempre uma franja de vida
onde se sentam dois homens.
Um homem e seu contrário,
uma mulher e sua memória,
um olho e seu brilho,
uma voz e seu eco,
e quem sabe até se Deus...

Recebe com simplicidade este presente do acaso.
Mereceste viver mais um ano.
Desejarias viver sempre e esgotar a borra dos séculos.
Teu pai morreu, teu avô também.
Em ti mesmo muita coisa já expirou, outras espreitam a morte,
mas estás vivo.Ainda uma vez estás vivo,
e de copo na mão
esperas amanhecer.

O recurso de se embriagar.
O recurso da dança e do grito,
o recurso da bola colorida,
o recurso de Kant e da poesia,
todos eles...e nenhum resolve.

Surge a manhã de um novo ano.

As coisas estão limpas, ordenadas.
O corpo gasto renova-se em espuma.
Todos os sentidos alerta funcionam.
A boca está comendo vida.
A boca está emtupida de vida.
A vida escorre da boca,
lambuza as mãos, a calçada.
A vida é gorda, oleosa,mortal,sub-reptícia.

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo

domingo, 17 de dezembro de 2017

Pequenas Coisas



Um dia de sol,
Ir à praia no verão
Sair pra dançar
Deitar no sofá 
Assistir um bom filme
Ver crianças brincando
Passear no jardim
Sentir o perfume das flores
Pisar na areia 
Ver a natureza
Admirar a lua e o céu estrelado
Sorrir do nada
Contar uma piada
Rever um grande amor
Amar sempre alguém
Olhar uma paisagem e dizer
“Como Deus é grande.”


Pamela Tailine
arte Kathleen Elsey

Algo Existe


Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.
Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura - um azul - uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trêmulo
E sutil, de mim se escape.


Emily Dickinson
arte Vasili Andreyevich Golynsky (1854–1904)

sábado, 16 de dezembro de 2017

Verão


Este fevereiro azul
como a chama da paixão
nascido com a morte certa
com prevista duração

deflagra suas manhãs
sobre as montanhas e o mar
com o desatino de tudo
que está para se acabar.

A carne de fevereiro
tem o sabor suicida
de coisa que está vivendo
vivendo mas já perdida.

Mas como tudo que vive
não desiste de viver,
fevereiro não desiste:
vai morrer, não quer morrer.

E a luta de resistência
se trava em todo lugar:
por cima dos edifícios
por sobre as águas do mar.

O vento que empurra a tarde
arrasta a fera ferida,
rasga-lhe o corpo de nuvens,
dessangra-a sobre a Avenida

Vieira Souto e o Arpoador
numa ampla hemorragia.
Suja de sangue as montanhas,
tinge as águas da baía.

E nesse esquartejamento
a que outros chamam verão,
fevereiro ainda em agonia
resiste mordendo o chão.

Sim, fevereiro resiste
como uma fera ferida.
E essa esperança doida
que é o próprio nome da vida.

Vai morrer, não quer morrer.
Se apega a tudo que existe:
na areia, no mar, na relva,
no meu coração - resiste. 

Ferreira Gullar
arte Edvard Munch



domingo, 3 de dezembro de 2017


Não caminhe atrás de mim; eu posso não liderar. Não caminhe na minha frente; eu posso não seguir. Simplesmente caminhe a meu lado e seja meu amigo."
(Albert Camus)

Sejam do nosso convívio físico, diário, ou os 'virtuais', sejam almas de poetas nos livros que lemos, ou vozes e imagens queridas dos que já nos deixaram, ou mesmo árvores, bichos, amigos transcendem as horas. São filamentos, extensões de anjos que abraçam a terra de pólo a pólo , e por cujas mediação e presença nossos 'ombros suportam o mundo'.
Fernando Campanella, 04 de janeiro de 2007
arte Kim Anderson