terça-feira, 21 de novembro de 2017

Vai-te poesia



Vai-te, Poesia!

Deixa-me ver a vida
exacta e intolerável
neste planeta feito de carne humana a chorar
onde um anjo me arrasta todas as noites para casa pelos cabelos
com bandeiras de lume nos olhos,
para fabricar sonhos
carregados de dinamite de lágrimas.

Vai-te, Poesia!

Não quero cantar.
Quero gritar!


José Gomes Ferreira



... Estou andando pela rua e do vento me cai uma folha exatamente nos cabelos. A incidência da linha de milhões de folhas transformadas em uma única, e de milhões de pessoas a incidência de reduzi-las a mim. Isso me acontece tantas vezes que passei a me considerar modestamente a escolhida das folhas. Com gestos furtivos tiro a folha dos meus cabelos e guardo-a na bolsa, como o mais diminuto diamante. Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança. E também porque sei que novas folhas coincidirão comigo. Um dia uma folha me bateu nos cílios. Achei Deus de uma grande delicadeza.”

Clarice Lispector
arte christian schloe

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Somos Inocentes


A parte dura desta humana lida
é dizer sim na hora do não,
escolher mal entre silêncio e grito,
entre a noite e a explosão
do dia.

Ceder quando devíamos negar, dizer
não em lugar de afirmar, partir
quando era bom amar, fechar-se
em vez de resgatar
a vida.

Sermos tão incertos e indecisos,
perdendo o trem, a hora,
o agora: mas a gente
não sabia.

Lya Luft
In Para não dizer adeus



domingo, 19 de novembro de 2017

Ao Caminhante



Só às vezes, à noite
Se pensa conhecer o caminho  
                             R.M.Rilke

Segue adiante, menino
qual seja o caminho
sem perder a certeza
que não temos destino
nem queremos chegar

Segue adiante, menino
já que o passo consola
e a beleza te toca
nem que seja uma vez
com o dedo do Deus.

Fernando Moreira Salles
arte Élon Brasil



Os amantes





Caules. Solidões
Ligeiras. Varandas
Esvoaçantes? – Montes,
Bosques, aves , ares.

Tanto, tanto espaço
Cingido de presença
Móvel de planetas
Os  abraços teimosos.

Gozos, massas, gozos,
Massas, plenitude,
Luz atónita
E vermelhos absortos!

E o dia? A lisura
Do vidro. Mudo,
O quarto afunda-se,
Varandas em branco.

Só , amor, tu mesmo,
Túmulo. Nada, nada,
Túmulo. Nada, nada,
Mas...  Tu comigo?

Jorge Guillén
arte Dorina Costras

Rio



Como vai serena a água!
Unifica silêncios.
À deriva, espadas
de cristal afiam, lenta
espera, seus gumes...
O mar precisa delas.
Porém, uma frescura errante
dispersa vozes apaixonadas
por todo o rio.
Elas pedem, juram, recitam.
Pulsação da correnteza!
Como bate! Delira!
Sob as águas singram
céus íntimos.
A corola do ar profundo
ilumina-se.
As vozes seguem ainda
mais apaixonadas. Vão ansiosas.
Eu queria, eu queria...
Todo o rio suspira.

Jorge Guillén

sábado, 18 de novembro de 2017

Noturno



(Sugestão de um poema faminto)

Tudo cor de azeitona.Fim do mês.
Noite opípara: a lua, qual pedaço
De um manjar branco, gira pelo espaço.
Ergue-se o monte como um bolo inglês.

Vejo a calda do oceano e a languidez
Da geleia d'arbustos que, em melaço
De orvalho, treme à aragem.Há um bagaço
De nuvens no ar. O mar, de vez em vez,

Lança n'areia espumas de cereja...
Vejo um sorvete e até abacaxi
Sob forma de torre de uma igreja!

Pelo espinheiro além, quando palito!
E as estrelas, no céu, longe daqui,
São biscoitos jogados no infinito!

Emílio Menezes
arte Tjalf Sparnaay

Trajetória



Não proclames tuas palavras
quando a força de uma divina mão
te arrebatar para um centro
invisível e imóvel.

Como o mistério nos campos
de uma semente vingada
serás lançado a uma solidão imensa
mas não a profanes com impropérios
de teus conhecidos fantasmas.
Pode já não ser a angústia,
pode já não ser o tédio
se a alma assume, atemporal, a trajetória.

Fernando Campanella

Assim nos Céus





O contorno de um jarro,
a etérea rosa,
o piano
em teclas de sonho a vibrar:
... um solitário noturno ou, quem sabe,
um mais que eterno romance,
uma serenata a duas mãos
tocada.
Assim nos céus,
À pálida memória de uma lua
ou de velas a bruxulear,
espectros de noivos,
irredimíveis ébrios de amor,
em alcovas de brumas
a valsar.


Fernando Campanella
arte Stephen Shortridge

Do Tempo


Para José Mindlin

Hora descarnada
não lembra
não tarda
hora rasa
nomeia a todos
convoca os deuses
e sem demora
vira a página

Fernando Moreira Salles
arte Christian Schloe

Travessia



 
Nesta nau
trago imagens
e a brisa
que me sopra
 
Viajo
senhor das velas
do sextante
e das estrelas
      Só me falta
      chegar

Fernando Moreira Salles
arte Christian Schloe
 

Navegantes




hoje
ergo velas
e fixo o lastro
à minha quilha

a proa incauta
vou, sem luzes
ao liso horizonte
do amanhecer

não largo amarras
desta feita
pois nem sequer
soube atá-las

não sei dos astros
pro meu sextante
e nem sereias
por estes mares

mas posso, ainda
olhar as ondas
viver o vento
e a espera

Fernando Moreira Salles
In Habite-se
arte Roberto Weigand





Apesar do desamparo dos desencontros.
do desespero dos descaminhos,
do desencanto dos desamores,
do desacerto dos desabafos,
do desafio dos desagrados,
do desalinho dos descontroles,
do desapego dos desalmados,
do desconsolo dos desvalidos,
do desacato dos descontentes,
do descompasso dos desatinos,
Eu permaneço e descanso em Ti,Senhor!

Maria Lucia Nascimento Capozzi
in Espelho de Mim

De andorinhas e palavras





As palavras recusam-se a guardar silêncios.
Libertam-se em sonhos de sílex
estilhaçam redomas de vidro
-cristalizadas memórias-
para irromper na manhã
de imprevista pauta anunciada
por andorinhas pousadas nos fios
acasaladas em breves semibreves:
palavras na iminência de ser música
palavras de asas, sombras e sons
-canção de luz invisível-
palavras que soam e voam
-partitura em revoada-
palavras rompendo amarras
irrompendo em novos poemas!

Joinville, verão 92.

Maria Lucia Nascimento Capozzi
In Álbum de Retratos

quarta-feira, 15 de novembro de 2017




A Juarez Machado


Quando é novembro
E a primavera reina
Na cidade dos Príncipes,
É vez de arte-flor.

Gerânios e orquídeas,
Antúrios,violetas
Brotando das paletas
Do artista pintor.

Passa novembro!
Pose-flor-moldura...
Passa cor-gravura,
Flor-exposição!

Encerra-se a mostra,
Mas as flores ficam.
A festa de aromas continua
A colorir de todos os matizes,
Qualquer encanto,
Onde quer que pises...

É que o artista que pintou a Terra
Fica morando aqui!
E no sossego de todas as luas,
Passeia solitário pelas ruas...

Vai colorir os ipês, as azaléias,
Vai retocar o roxo dos jacatirões...
Suspende as buguenvílias,
Os ramos de alamanda,
E acaba cochilando
Nos caramanchões...

Depois de novo acesso,
Retoma a caminhada,
Antes que a leda madrugada
Descubra seu pincel.

Pinta os jardins,
Os vasos das janelas,
Transforma as praças da cidade
Em telas,
para a surpresa,
A cores,
De cada amanhecer...

Mila Ramos
In Pé de Vento

Comunhão


Já que me sinto muito digna
de me assentar à tua mesa,
não quero migalhas, não,
eu quero o pão inteiro.
Tu e eu, massa e fermento
em ávido silêncio:
casca e miolo,
o bolo
e o seu recheio
Vem.

Estende os lençóis sobre esta
mesa
com cheiro de suor e de
alfazema.
E vamos trabalhar a noite
e o seu levedo
com as mãos,
a boca,
o corpo aceso,
para que a aurora nos en-
tregue,
ainda quentes,
as últimas fatias de amor
amanhecente
com gosto de café, de leite
e de manteiga.

 Ilka Brunhilde Laurito

Bom dia,vida!


A luz da manhã despiu seu cobertor de neblina.
Bom dia, vida!

O meu corpo amanheceu com uma alegria menina!
Bom dia, bom dia!

Abro a janela ao convite
de um coral de passarinhos. Um sol cor de riso me veste
da cabeça até os pés. Respiro aroma de terra, cheiro de orvalho e café.
Bom dia, bom dia!

Dia bom de colher flores
e um ramalhete de amores ... Bom dia, vida,
Bom dia!

Ilka Brunhilde Laurito
arte Eugene de Blaas


A Estrelinha



Primeira   estrela  que  vejo; 
dá-me  tudo  que  desejo!
eu  só  desejo;  estrelinha;
que  sejas  amiga  minha.

diz  até   logo  pra  lua;
desce  aqui  na  minha  rua;
vem  brincar  no  meu  jardim 
piscando só  para  mim;

e;  quando   chegar  a  hora
de  pro  céu  ires  embora;
leva  contigo  uma  rosa
muito  linda  e  bem  cheirosa.

guarda  a  flor  como   lembrança
do  meu  amor  de  criança.
e  assim;  estrelinha   amada ;
tua  luz  será   perfumada.

Ilka Brunilde  Laurito

Do Saber...


Não existe ocupação tão agradável como o saber; o saber é o meio de nos dar a conhecer, ainda neste mundo, o infinito da matéria, a imensa grandeza da Natureza, os céus, as terras e os mares.
O saber ensinou-nos a piedade, a moderação, a grandeza do coração; tira-nos as nossas almas das trevas e mostra-nos todas as coisas, o alto e o baixo, o primeiro, o último e tudo aquilo que se encontra no meio; o saber dá-nos os meios de viver bem e felizmente; ensina-nos a passar as nossas vidas sem descontentamento e sem vexames.
Cícero Disputas Tusculanas

Emudecendo o poeta



A tarde morre... o vento burburinha
Por entre os galhos onde o sol dardeja.
No alto dos montes a noite se aninha.
A terra aos seus pés, contemplar deseja.
Na beleza da hora que acarinha,
- Paz e sossego a natureza almeja.
Há qualquer coisa no ar, que se avizinha;
- Doce mistério que da noite adeja.
O perfume dos flores como um beijo
- Rola das serras, corre pelo chão,
Volúpia provocando num pecado.
A noite chega cheia de desejo...
Num amplexo ela abrange a imensidão,
Emudecendo o poeta mais versado.

Yedda Lamounier
In Soluços do Coração

O VIOLINO



São, às vezes, as surdinas 
Dos peitos apaixonados 
Aquelas notas divinas 
Que ele desprende aos bocados...
Tem, ora os prantos magoados 
Dessas crianças franzinas, 
Ora os risos debochados 
Das mulheres libertinas...
Quando o ouço vem-me à mente 
Um prazer intermitente... 
A harmonia, que desata,
Geme, chora... e de repente 
Dá uma risada estridente 
Nos "allegros" da Traviata.

Emilio de Menezes
arte Theo van Rysselberghe

quarta-feira, 8 de novembro de 2017



Que a felicidade
não dependa
do tempo, nem da paisagem,
nem da sorte, nem do dinheiro.

Que ela possa vir com toda a simplicidade,
de dentro para fora,
de cada um
para todos.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 4 de novembro de 2017



Ainda que o canto desça, de atropelo
Como abelhas no enxame alucinante
em torno a um tronco, me penetre pelo
ouvido, em sua música incessante,
juro a mim mesmo: nunca
hei de escrevê-lo.


Hei de fechá-lo em mim como diamante
dentro da pedra feia.Hei de escondê-lo
na minha alma cansada e navegante.

E nunca mais proclamarei que te amo.
Antes o negarei como os namoros
secretos de menino encabulado.

Que se cale este verso em que te chamo.
Cessem para jamais risos e choros.
Meu amor mineral é tão calado!

Odylo Costa Filho
In As Tormentas

sexta-feira, 3 de novembro de 2017

Na esfera dos valores



Na esfera cristalina dos valores
aprimora a virtude soberana
de descobrir o bem onde ele exista.

Ama a verdade mesmo contra todos.
A verdade será tanto mais tua
quanto mais a espalhares pelo mundo.

Na medida do humano põe tua alma
e sentirás a mão da caridade
em cada ato de amor e de justiça.

Nos momentos mais duros ou banais,
ou quando entregue às formulas do exato,
de um sopro de beleza não prescindas.

Faze da tolerância o teu Virgilio
para cruzar o inferno e o purgatório
dos vícios e maldades deste mundo.

Seja o teu pensamento alto e sereno
como a águia que domina os horizontes,
como a cruz que se eleva na montanha.

Só assim, no atropelo da existência,
viverás a humildade de teus gestos
ocultando a grandeza de teus sonhos. 

Miguel Reale
In Poemas do Amor e do Tempo

Metamorfose do amor



Se me queres assim, se tu me queres
é porque me tornaste diferente.

Se me queres assim
é porque em mim
já estás presente.

Às vezes quedo-me a pensar
que o amor nisto se resume,
dois seres mutuamente a se entregar
recebendo com ciúme
o que voltam a permutar.

Miguel Reale
In Poemas do Amor e do Tempo
arte Adélio Sarro



Ela, a eternidade,
Foi encontrada.
É o mar misturado 
Ao sol.
Cumpre tua jura,
Alma,eternamente
Viva, seja o ardente
Dia ou a noite pura.
Ficas livre, então,
De humanos apoios,
Entusiasmos vãos! 
E voas segundo...
Jamais a esperança
E jamais orietur.
Ciência e paciência,
O suplício é certo.
Nem dia seguinte,
Brasas de cetim,
Que vossa paixão
É obrigação.
Foi encontrada!
- Que? - a Eternidade.
É o mar misturado 
Ao sol.

Arthur Rimbaud
In Uma Temporada no Inferno
Tradução de Lêdo Ivo



Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.
Alma sentinela
Murmura teu rogo
De noite tão nula
E um dia de fogo.
A humanos sufrágios,
E impulsos comuns
Que então te avantajes
E voes segundo...
Pois que apenas delas,
Brasas de cetim,
O Dever se exala
Sem dizer-se: enfim.
Nada de esperança,
E nenhum oriétur.
Ciência em paciência,
Só o suplício é certo.
Achada, é verdade?
Quem? A Eternidade.
É o mar que se evade
Com o sol à tarde.

Rimbaud
Tradução Ivo Barroso
In Bula Revista