segunda-feira, 30 de abril de 2018

Veranico


Resto de frio.
Desliza o arrepio
pela espinha dorsal
e se acaba.
Contraria o texto original.

Vem viração fora de hora,
que de repente caustica,
inquieta,abafa,falsifica
e a cada ano custa mais a ir embora.

Com esse prevarico de Verão,
fica o povo todo sem saber
se as estações é que cometem adultério
ou se sua terra é que começa a envelhecer.
Será isso Veranico ou Climatério?

Flora Figueiredo
Estações

domingo, 29 de abril de 2018

Canção de Maio


Maio, seis e trinta
da manhã. O céu
docemente como
lembrança de céu.

Calmaria nas
folhas. E o anjo
iluminador
numa dança branca

vai tocando de alma
cada ser e objeto,
até o recôndito,
último deserto

que eu sentia e eis
que não sinto já,
Maio. Seis e trinta
e três. Nesta paz,

neste papel, com
esta tinta azul
(qual lembrança), gravo
o que se faz tudo

em mim, e que peço
se cumpra: o desejo
de ser este o meu
final de endereço.

Ruy Espinheira Filho
In Poesia Reunida

Amanhescência



A neblina pisa leve e branca,
rendilhada e feminina.

Mantilha,
silêncio,
sapatilha...

Desce na sombra,
volita,dança e vai embora.

Névoa,
bruma,
fumaça,
mulher:
insinua,sugere e depois passa.
Vaga esperança em coração de Malmequer.

Flora Figueiredo
Estações

Maio


Maio não conta aos outros meses
o segredo de seu azul.
Sempre que vem,
traz consigo tetos lisos e claros,
de cromatismo raro:
índigo e safira,
cobalto e anil.
Esse azul que suspira e sonha alto
adorna maio com tez de porcelana,
onde a luz deliciada põe seu beijo.
Ao findar do dia, ele retira seu reinado
pintando de genciana a tarde de azulejo.

Flora Figueiredo
de  Estações

domingo, 15 de abril de 2018

Vivi, olhei, li, senti...





                                                                  Vivi, olhei, li, senti...
                                                Terás então de ler de outra maneira,
Como, Não serve a mesma para todos,
cada um inventa a sua, a que lhe for própria,
há quem leve a vida inteira a ler sem nunca ter conseguido ir
mais além da leitura, ficam pegados à página, não percebem
que as palavras são apenas pedras postas a atravessar a
corrente de um rio, se estão ali é para que possamos chegar
à outra margem, a outra margem é que importa,
A não ser, A não ser , quê, A não ser que esses rios não tenham
duas margens, mas muitas, que cada pessoa que lê seja, ela,
a sua própria margem,e que seja sua, e apenas sua,
a margem a que terá de chegar.

José Saramago,
in A Caverna
                                                            

Viver


Atravessar a vida
como a vida vem,
tão displicentemente
quanto nuvens soltas
que nem sabem que a chuva
é sangue
nas veias do chão,

não é viver de gente
Viver é diferente.

É suar
e de suor nutrir a terra.
É sentir
e de sentidos preencher vazios.
É ouvir e dizer,
perguntar e responder,
brigar e desistir,

ansiar,sofrer,sorrir,
e sobre todos
e sobretudo,
amar.

Mila Ramos
In Em Surdina
arte Dorina Costras

Canção do amor.



Tu és a corça e eu o cervo,
pássaro tu e eu a árvore,
o sol tu e eu a neve,
tu és o dia e eu o sonho.
De minha boca adormecida à noite
um pássaro de ouro voa a ti:
tem a voz clara, multicolores asas,
e vai cantar-te a canção do amor
- e vai cantar-te a canção de mim.

Hermann Hesse
arte March Chagall

Queria ver-te apenas...


Queria ver-te, apenas... Sim, queria
esquecer, em silêncio, os meus olhos nos teus.
Sem te dizer, sequer, ao te avistar: - "Bom dia",
sem te dizer, sequer, ao te deixar: - "Adeus".

Queria ver-te, apenas... Sim, queria
esquecer, em silêncio, os meus olhos nos teus...

Cleómenes Campos

O meu amor vai para o teu devagarinho...



O meu amor vai para o teu devagarinho,
cheio de pensamentos de ternura,
como o rio que vem de uma remota viagem,
trazendo sobre o dorso,ainda suado de espumas,
as flores que colheu nas curvas do caminho
ou que roubou das mãos da aragem...

O meu amor vai para o teu,aereamente,
como uma nuvem baixa, hesitante e sombria,
que visse, muito no alto, uma outra,luminosa,
grande ilha de coral solta no firmamento,
e lhe saísse atrás, ao léu da ventania
errante e caprichosa...

O meu amor vai para-o-teu-sem-dizer-nada,
como um segredo sem palavras, uma sombra
que, ao ver a tua luz, se quedasse atraída...
O meu amor vai para o teu, que é uma rajada,
como uma simples folha
caída...

Cleómenes Campos
In Poesias Consagradas

domingo, 8 de abril de 2018

Retorno



Afrodite sussurrou em meu ouvido:
- Prepara-te para acalentar o menino amor.
De braços estendidos o recebi
De coração desabrigado o vi chegar
e como uma manjedoura de pérolas o ninei.
Mas o amor se fez livre!
Desejou ir além de minha redoma
Sem olhar para nossa fronte, decidiu ir.
Foi, ficou, a volta, quero não, atentou, esqueceu…
De vez em vez corria ao meu encontro com um sorriso cor de céu.
Seduzia-me como um Dom Juan mais glamoroso ou
como o Casa Nova renascido das águas Venezianas.
Trazia-me cantigas das estrelas visionadas
Com paciência eu o admirava.
Baco um dia se apossou do meu ex-amor menino
Transformou minhas lágrimas no mais puro néctar fermentado das uvas de suas
entranhas.
A morada seria o bosque efêmero onde
há amores sedentos do meu ex-menino amor.
Após a quarta-feira de cinzas
O amor juvenil bateu a minha janela
-Posso pousar?
Todo meu corpo consentiu.
Dormiu dois dias a fio
Ao acordar estava com a tal meia idade
Mas a época não mudara
Nem eu.
 
Mônica Assunção Mourão
Imagem 'Afrodite e Eros', de Giovanni Antônio Pellegrini


Conheço um lugar onde floresce o tomilho silvestre,
onde primaveras e violetas pendentes crescem,
coberto por um dossel de madressilvas exuberantes,
com doces rosas almiscaradas e roseiras-bravas;
lá dorme Titânia uma parte da noite,
embalada, nessas flores, com danças e festas;
e lá a serpente troca sua pele esmaltada,
qual larga folha que possa envolver uma fada;
e com o suco disto vou esfregar-lhes os olhos
e deixá-la repleta de odiosas fantasias.
Pega um pouco dele e procura neste bosque:
uma doce dama ateniense está apaixonada
por um desdenhoso jovem; unge os olhos dele;
mas faz isso de modo que a dama seja
a próxima coisa que ele veja.Reconhecerás o homem
pelos trajes atenienses que veste.
Faze-o com algum cuidado, para que ele se mostre
mais apaixonado por ela do que ela por seu amor.
E procura encontrar-me quando o primeiro galo cantar.

William Shakespeare
In Sonho de Uma Noite de Verão
tela: Titania Sleeps; A Midsummer Night's Dream
by Frank Cadogan Cowper

sábado, 7 de abril de 2018


Volto na tarde sem brisa,
vou pelos túneis do tempo,
para ver se em algum atalho
encontro a manhã da infância,
cheia das rosas de maio,
cheia de andores azuis...

- Nas procissões da Esperança,
eu tinha pássaros na alma
e ramos verdes na mão...
Nossa Senhora da Glória!
ao longo das alamedas
quanta luz havia então!

Volto na tarde sem brisa...
Mas só encontro os presságios
dos nimbos que se aglomeram
da grande noite parada
no chapadão dos novembros...

-Em que atalho do passado,
em que alameda perdida
ficou a manhã da infância,
cheia de rosas de maio
cheia de andores azuis?

Antonieta Borges Alves
In Lírios de Pedra

O Outono


Pássaros, que nos ramos
entoais vosso canto
pelo crestado bosque:
pássaros, aviai-vos!

Já vem o vento que sopra,
já vem a morte que ceifa,
já vem o cinéreo fantasma que gargalha
a enregelar-nos  o coração
- e o jardim perde toda a sua pompa,
e a vida perde todo o seu fulgor.

Amados pássaros entre as folhagens,
irmãozinhos queridos,
permiti que cantemos e nos alegremos:
nós já vamos ser pó!

Hermann Hesse
In Andares
tela de  LEONID AFREMOV