segunda-feira, 19 de março de 2018

Sombra




O sol pendurado, lá de cima,
estica uma linha preta
que despenca lisa e reta
sobre a rima.
Sombra do poste sobre a borboleta.

Flora Figueiredo
In Estações

Brisa



No primeiro hálito de Outono,
um sopro de harmonia.
Adolescência sutil,
a brisa passa,
encontra uma poesia,
se entrelaça.
Dorme inocências no colo de abril.

Flora Figueiredo
In Estações

Tonalidades



Vermelho,
rosáceo,
violáceo,
laranja.
Anoitecer outoniço:
brincando de pintor,
o anjo despeja feitiço
da caixa de lápis de cor.

Flora Figueiredo
arte Victor Nizovtsev

domingo, 18 de março de 2018

Canção de Outono



O outono toca realejo
No pátio da minha vida.
Velha canção, sempre a mesma,
Sob a vidraça descida…

Tristeza? Encanto? Desejo?
Como é possível sabê-lo?
Um gozo incerto e dorido
de carícia a contrapelo…

Partir, ó alma, que dizes?
Colher as horas, em suma…
mas os caminhos do Outono
Vão dar em parte alguma!


Mario Quintana

Outono




Tarde pintada 
Por não sei que pintor. 
Nunca vi tanta cor 
Tão colorida! 
Se é de morte ou de vida, 
Não é comigo. 
Eu, simplesmente, digo 
Que há fantasia 
Neste dia, 
Que o mundo me parece 
Vestido por ciganas adivinhas, 
E que gosto de o ver, e me apetece 
Ter folhas, como as vinhas. 

                             Miguel Torga                              
Do livro: Diário X, 


A gente sempre deve sair à rua
como quem foge de casa
Como se estivessem abertos diante de nós
todos os caminhos do mundo.
Não importa que os compromissos,
as obrigações, estejam ali...

Chegamos de muito longe,
de alma aberta e o coração cantando!

Mario Quintana,
in "A cor do invisível".
arte Daniel F.Gerhartz



"...a arte consola, conforta, é pão espiritual... somos famintos de transcendência... tem algo mais nos acenando de dentro do nosso próprio ser... vida interior, simbólica... a arte nasce da profundidade da nossa alma, do nosso sentimento... e produz a partir daí... a obra lhe é dada, oferecida como um dom para o deleite, para a alegria de toda a comunidade humana... pois estamos procurando as coisas espirituais, de natureza divina... sem isso a gente está regredindo à pura barbárie... para a humanização, a arte está no mesmo caminho da mística, da fé religiosa..."


 Adélia Prado
tela Frank Cadogan Cowper


Eu me encontrei no marco do horizonte
Onde as nuvens falam,
Onde os sonhos têm mãos e pés
E o mar é seduzido pelas sereias. 

Eu me encontrei onde o real é fábula,
Onde o sol recebe a luz da lua,
Onde a música é pão de todo dia
E a criança aconselha-se com as flores.

Onde o homem e a mulher são um,
Onde espadas e granadas
Transformaram-se em charruas,
E onde se fundem verbo e ação.

Murilo Mendes (1901-1975)
arte Dorina Costras

E se vier




E se vier que traga o coração
No seu lugar de paz. Amor diremos,
que outro nome melhor se não descobre.
Só a vida não diz quanto sabemos.

José Saramago
In Provavelmente Alegria
tela Elzbieta Mozyro

Serenata à chuva





Chuva, manhã cinza, guarda-chuva.
Entrar no contexto, dois pontos. Ele e ela
abraçados caminham sob o tecto
do guarda-chuva que os guarda.
Pelas ruas vão com a vontade de voltar
ao branco dos lençóis. Esse objecto prosaico
que às vezes se vira com o vento
torna-se objecto do poema. Dizer também
como a chuva é doce neste dia de verão.
Como o amor altera o sentido da chuva,
sim, como ela se eleva no ar e as frases se colam
ao vestido. No interior da pele o poema mudou
desde que entraste no guarda-chuva esquecido
a um canto do armário.Talvez o amor seja tudo amar
sem excepção. Eu que nunca uso guarda-chuva
assino incondicionalmente este poema.

Rosa Alice Branco
In Soletrar o dia 
tela Andre Kohn

Soneto LXX



Se te censuram, não é teu defeito,
Porque a injúria os mais belos pretende;
Da graça o ornamento é vão, suspeito,
Corvo a sujar o céu que mais esplende.
Enquanto fores bom, a injúria prova
Que tens valor, que o tempo te venera,
Pois o Verme na flor gozo renova,
E em ti irrompe a mais pura primavera.
Da infância os maus tempos pular soubeste,
Vencendo o assalto ou do assalto distante;
Mas não penses achar vantagem neste
Fado, que a inveja alarga, é incessante.
Se a ti nada demanda de suspeita,
És reino a que o coração se sujeita.
 William Shakespeare

É preciso ser duro



É preciso ser duro
como a pedra que parte
como a parte da pedra
que penetra a parede
e a parte
Como a rede que não vaza
como o vaso que não quebra
como a pedra que fende
o paredão da casa
E é preciso ser fraco
é preciso ter siso
e simulacro. É preciso
todos os dias vencer
os deuses pigmeus/golias
É preciso ter cara
e ter coragem

É cada vez mais raro
quem assim reage

É preciso ser duro
como o murro
como o muro
e é preciso ser doce
como se anteparo
de vidro
o muro fosse

É cada vez mais raro
ser duro e doce
cada vez mais torpe
ser apenas duro
cada vez mais nulo
ser apenas doce
cada vez mais duro
ser o muro e a nuvem
como se um só fossem.

Ivo Barroso
In Jornal da Poesia

Eu sou vertical



Gostaria de ser horizontal.
Não sou árvore com raízes no solo
Sugando os minerais e o amor da natureza
Para em cada maio reluzir-me em folhas.
Nem sou como os encantos de um canteiro
Atraindo um quinhão de Ahs! com minhas flores
Sem saber que em breve estarei despetalada.
Comparada comigo, a árvore é imortal
E o canteiro não me sendo mais alto, é mais surpreendente,
E quisera desta a longevidade e daquele a insolência.
Hoje, diante da luz infinitesimal das estrelas,
As árvores e flores destilam seus frescos odores
E caminho entre elas, sem me notarem.
Às vezes penso que, quando estou dormindo,
É quando de fato mais me pareço com elas.
Os pensamentos se esvoaçam.
Para mim é mais natural estar deitada
Quando o céu e eu entramos em conversa franca
E me sentirei útil quando estiver estendida para sempre:
Então as árvores poderão tocar-me, e as flores terão seu tempo para mim.

Sylvia Plath
tradução Ivo Barroso


Contraste



Quando partimos no verdor dos anos,
Da vida pela estrada florescente,
As esperanças vão conosco à frente
E vão ficando atrás os desenganos.

Rindo e cantando, célebres, ufanos,
Vamos marchando descuidosamente;
Eis que chega a velhice, de repente,
Desfazendo ilusões, matando enganos.

Então, nós enxergamos claramente
Como a existência é rápida e falaz,
E vemos que sucede, exatamente,

O contrário dos tempos de rapaz:
— Os desenganos vão conosco à frente,
E as esperanças vão ficando atrás.

Padre Antônio Tomás
arte desconheço autoria

Aparição



A lua estava triste. Arcanjos sonhadores
Em pranto, o arco nas mãos, no sossego das flores
Aéreas, vinham tirar de evanescentes violas
Alvos ais resvalando entre o azul das corolas.
– Era o dia feliz de teu primeiro beijo.
Para me torturar, meu sonho, meu desejo
Embriagavam-se bem do perfume de queixa
Que mesmo sem remorso e sem motivo deixa,
No coração que o colhe, a colheita de um sonho.
Eu ia à toa, o olhar no chão velho e tristonho,
Quando trazendo nos cabelos um sol lindo,
Na alameda e na tarde apareceste rindo.
E eu julguei ver, com seu chapéu de luz, a fada
Que nos meus sonhos bons de criança mimada
Sempre deixou nevar dentre as mãos mal fechadas
Punhados celestiais de estrelas perfumadas.


Stéphane Mallarmé 
tradução Ivo Barroso
arte Alphonse Osbert 

Última acrta




Te ofereço Abril - 

Abril subindo as escadas noturnas
onde o silêncio acumulou as heras do longínquo
Abril fitando um céu fluorescente
debruçado em sacadas e colunas.

Te ofereço a minha paz - 

Este modo tranquilo de ser
como um pôr-do-sol na minha terra.

Te ofereço a gratuidade do crepúsculo,
a tradição dos relógios antigos
a doce alegoria dos cartões-postais.

Te ofereço esta árvore, tão provinciana,
que ainda sabe amadurar seus frutos
entre sombras e pássaros.

Tudo o que a tua infância não provou
e que a tarde como um canto rememora. 

Mas não aceites nada - 
que isso são coisas tristes do passado
e eu prefiro o teu sorriso
em que os dias eternos se renovam.

Ivo Barroso
In A Caça Virtual
arte Bernard Charoy

Em troca da alegria




Semeaste o dia. De manhã cedo
a terra disse o meu nome com a tua voz.
Na casa da minha avó eu acordava
com o cheiro do pão acabado de fazer.
Ela que tudo fazia e tudo nos dava
dá-me agora muito mais.O seu rosto
mora comigo e as mãos acariciam-me 
cada palavra que não sei dizer.Esta manhã 
vi o mar à janela e uma gaivota sorria-me
do outro lado da rua. E não perguntei
onde estás ou se tens passado bem.
Nada perdi em troca da alegria.
Nada desejei com o pão e o café.
Vesti-me depressa e comecei a dançar.

Rosa Alice Branco
In Soletrar o dia
arte Daniel F.Gerhartz

terça-feira, 6 de março de 2018

Amarelinha





Procuro o céu insistentemente
como toda a gente,
jogando com a vida
como uma pedrinha
na amarelinha.
De pulo em pulo,
um só pé no chão,
sinto a realidade.
A outra metade é sonho, ilusão.
Assim me equilibro com dificuldade.
Se a pedra cai fora,
então recomeço.
Se a pedra cai dentro,
me ajeito e me apresso.
A meta é no alto
e de salto em salto
disputo comigo.
Às vezes me alegro,
às vezes me exalto.
Será que eu consigo?

Flora Figueiredo
In Florescência

segunda-feira, 5 de março de 2018

Chuvarada



Inquieta-se o calor
que, de tão quente,
já não suporta o seu próprio cobertor.
Espera a tempestade
que vem no fim da tarde,
quando o peito suado fervilha.
Ela lambe-lhe o rosto,
beija-lhe a virilha
e, excitada, põe a praça louca e alagada.
Goza na boca morna do sol-posto.

Flora Figueiredo
In Estações

Jasmineiro



Diverte-se colorindo espaços
e, à noite, o Jasmim se enamora.
Banha-se de estrelas,
perfuma-se de extratos de cetim.
Adula amores com licores de melaço,
escorre açúcar pelas dobras do mormaço.
Ele é o exemplo de luxúria do jardim.

Flora Figueiredo
In Estações

domingo, 4 de março de 2018

Frio de Verão




E esse frio repentino
onde há pouco brilhava sol a pino?
Tempo louco!
O céu de cenho cerrado impõe-se sisudo.
Há que manter autoridade!
Fica parte do dia carrancudo.
É bom que o Astro se convença
de que é preciso ter juízo
para manter o equilíbrio da cidade.
As nuvens logo criam desavenças.
O céu de São Paulo é ranzinza,
mas zanga de coração grande não perdura.
Já ja ele recolhe todo o cinza,
tira o mofo, lava a tintura,
põe brilho novo, limpo e bem passado
a pender farto das bordas da moldura. 

Flora Figueiredo