Deus, põe teu olho amoroso sobre todos os que já tiveram um amor e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem - nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa. Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV... Olha também pelo motorista de táxi que confessa não ter mais esperança alguma... Olha por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida que não a que vivem... Deita teu perdão sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma - sobre esses que sobreviveram a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.
Fragmentos de ZERO GRAU DE LIBRA
Caio Fernando Abreu
arte Tchiro Tsuruta
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